sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Entrevista com Heleieth - Autoras: Joana Maria Pedro; Anamaria Marcon Venson

Entrevista com Heleieth
            Joana Maria Pedro[1]
Anamaria Marcon Venson[2]

Havia algum tempo que nós já tínhamos ouvido falar de Heleieth Yara Bongiovani Saffioti. Sua presença nos eventos, mesas redondas, palestras, foi sempre marcante. Fazia sempre afirmações contundentes. O livro A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, resultado de sua tese, publicado pela Vozes em 1969, foi leitura imprescindível para muitas teses de doutorado. A última vez que a vimos foi em Florianópolis, numa mesa redonda sobre “Memórias do Feminismo”, quando chamou a atenção do público falando  da situação das mulheres no passado e discutindo gênero. Sua maneira original de ensinar, de discutir e falar levou o público a rir muito.
            Entrevistar Heleieth fez parte da pesquisa sobre feminismo no Brasil, e o contato com ela foi especial. Fomos a São Paulo para fazer várias entrevistas e, entre estas, encontrá-la. Ela nos esperava no horário marcado. Confessamos nosso nervosismo. Ela estava, como sempre, bem vestida, cabelos arrumados, alegre. Uma pessoa acostumada a dar entrevistas, a ser alvo de atenção. Começou explicando porque seu nome é imenso: “Quando eu casei,” disse ela, “a mulher era obrigada a assinar o nome do marido. Eu sempre fui muito ciosa da minha identidade, então, mantive o Bongiovani, que era do meu pai. Eu mantive porque eu não queria me despersonalizar. Eu era a Heleieth e queria continuar assim!”. 
            Falou de sua vida, contextualizando-a desde a cidade onde nasceu: Ibira, no Estado de São Paulo, perto de São José do Rio Preto, no dia 04 de janeiro de 1934. “Tô velha!” - acrescentou sorrindo.
            Contou que teve dificuldades para estudar e que, determinada a conseguir, teve que mudar de residência várias vezes. “Minha família era muito pobre, não podia custear meus estudos. Quando eles mudaram para o sertão, eu fiquei com a minha avó para fazer o grupo escolar. Entrei com seis anos, e já entrei alfabetizada. Eu era a neta preferida da minha avó e fiquei com ela porque eu estava estudando. Quando terminei o primário, não tinha nem dez anos. Daí, eu fui para o sertão também. Minha mãe, muito sábia, conversou com os professores, de modo que eu fiquei naquelas classes que reuniam crianças de primeiro, segundo e terceiro anos primários, como uma espécie de monitora da professora. Depois de três anos, eu entrei no ginásio em São Paulo sem cursinho, sem nada. Primeiro, fiquei na casa de uma tia, coitadinha, ela já faleceu. Era muito boazinha. Depois, fui para a casa de outra tia. Mas essa era uma bruxa, muito ruim, batia! Mas aí ela adoeceu, foi hospitalizada. Então me levaram para outra cidade, onde eu tinha um tio que era professor na escola agrícola. Só que, quando eu cheguei lá, já não tinha mais condução da fazenda onde ele morava para a cidade. Então, eu fui morar na casa dos sogros do meu tio, que me tratavam como se eu fosse outra filha. Depois, fui morar com outra tia, na casa de duas bruxas que já morreram. Sofri como cão. Porque eu era a gata borralheira... Eu fazia todo o serviço da casa e estudava à noite. Saía às onze e cinco da noite daqui e ia para Tucuruvi. Naquela época, era distante demais, agora é um pulo, de metrô... Mas, antes, era muito longe. Daí, ao cabo de um ano, eu falei para a mamãe: ‘eu não vou mais ficar lá, não.’”
           Articulando detalhes, ela contou como era sua vida na casa desta tia: “Eu morava com uma tia, uma prima e um primo. A minha prima estudava em colégio privado. Ela chegava, almoçava, fazia a siesta... E eu fazia todo trabalho da casa. A minha tia costurava aquelas saias godê guarda-chuva, e eu tinha que fazer aquelas bainhas imensas... Imagina! Minha prima não fazia nada e eu tinha que fazer tudo! Ela era muito paparicada. E a gata borralheira era eu.... Porque da minha casa não vinha nada, nem água. E, então, vejam bem, se nós estávamos em véspera de viagem, ela arranjava aquela montanha de roupa para eu fazer bainha e dizia: “se não fizer, não viaja.” Aí eu fazia. Eu era parente deles, mas eu era tratada de modo desigual. Mas eu, revoltada contra isso, sabotava tudo que eu podia.”
           E falou das muitas coisas que aprendeu a fazer: “No segundo ano do ginásio, eu comecei a bordar. Eu fazia tricô muito bem, bordava muito bem! Eu bordava enxovais para noivas. Com dez anos, já estava no trabalho. Mas fiquei menos de um ano bordando, porque logo arranjei um trabalho como secretária. E eu não sabia nada para ser secretária! Eu tinha quinze anos e era secretária de um cidadão que exportava lã. Aprendi até a telegrafar! Quando fiz dezoito anos, minha família mudou para cá (São Paulo). Nessa época, eu dava aulas particulares. Cheguei a ter 3 empregos.”
“Em 1960, eu me formei em Ciências Sociais, na USP. Quando eu estava no primeiro ano de faculdade, casei-me. Logo depois, meu marido ganhou uma bolsa nos Estados Unidos e nós ficamos lá um ano. As minhas pesquisas, comecei em março de 1962. Nessa época, meu marido já estava trabalhando em Araraquara. Ele deixou a USP porque foi convidado para organizar o primeiro curso de química, lá. Ele era um sonhador mesmo, achava que podia fundar uma universidade... Então, eu tinha o meu cargo aqui em São Paulo, mas precisava ir para Araraquara. Afastamento eu não podia pedir, porque já tinha pedido uma vez para acompanhar meu marido aos Estados Unidos; também já tinha saído por quatro anos para fazer a faculdade.” Então a solução para mudar de cidade sem perder o cargo foi fazer outro vestibular: “E foi o que eu fiz: fiz o vestibular para pedagogia e passei em primeiro lugar. E foi muito engraçado, porque, no fim, acabei dando aulas para aquelas pessoas com as quais eu havia prestado vestibular!”
            Heleieth falou também do início de sua pesquisa, que resultou no livro já citado. Ela conta que começou a pesquisar quando estava em Araraquara, acompanhando o marido. Lembra que passou a fazer doutorado com Florestan Fernandes, mas que poucas vezes teve orientação dele. Ela afirma: “Só que... imagina... O Florestan, um homem ocupadíssimo... Não havia o hábito da orientação! Eu nunca recebi uma orientação do Florestan. Quando entreguei a tese a ele, marcou uma data para eu ir a casa dele conversar. Pois ele ficou cinco horas criticando a tese e, ao mesmo tempo, me dizendo: “você não irá para o doutorado, irá diretamente para a livre docência.” Ela, entretanto, teve dúvidas sobre o caminho indicado pelo orientador, mas acabou aceitando.
            Narra, então, como fez a pesquisa: “Eu escolhi uma fábrica de barbantes em Araraquara, porque havia uma certa concentração de têxteis na cidade. Eu não queria comparar as operárias com as professoras, eu queria era ver a opinião dos maridos. Só que, quando chegou a hora de escrever para defender como livre docência, eu achei aquilo muito pequeno.  Então, eu deixei aqueles dados lá esperando e, em 1969, escrevi um livro. Acabei não usando esses dados empíricos na tese de livre docência, porque fiz um livro de reconstituição histórica e teórico. Minha pretensão era fazer uma coisa grande, entendeu?”
            Sobre as leituras feministas que fez e que a inspiraram, lembrou que havia pouca coisa escrita sobre o assunto, na época.  “O que existia era o livro da Simone de Beauvoir e ponto”, enfatiza Heleieth. Mas ela também faz referências ao livro de Betty Friedan. Disse que se entusiasmou ao ler A Mística Feminina, e que este livro a fez esquecer o Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Este esquecimento, segundo ela própria, a envergonhou: “Então, em 1999, quando o livro dela fez 50 anos, eu fui ao colóquio de Paris e as americanas denunciaram as cópias que a Betty Friedan tinha feito da Simone. Eu queria abrir um buraco para me enfiar! Eu fiquei tão entusiasmada com o livro da Betty Friedan que não me lembrei, não associei, citei muito pouco a Simone de Beauvoir. E, na verdade, quando ela [Simone de Beauvoir] diz ‘ninguém nasce mulher, se torna mulher’, está aí o embrião do conceito de gênero. E quando eu falei, no meu primeiro livro, da elaboração social do sexo, eu estava falando de gênero!”
            Numa parte da entrevista, tentou justificar porque resolveu estudar as mulheres:
“(...) eu sempre fui rebelde. Minha mãe dizia, quando meu irmão e eu éramos crianças, que ele era muito pacato, muito caseiro, e eu, rueira. Eu já estudava em São Paulo e, quando voltava de férias, pegava o cavalo do meu pai e ia pras fazendas buscar milho verde, melancia, coisas que eu adoro até hoje. E eu não obedecia muito, não. Meu irmão apanhava da minha mãe, porque quando ela vinha bater, ele ficava esperando e eu fugia! Então, minha mãe dizia: ‘os sexos nessa família vieram ao contrário! Você é rueira, desobediente, teimosa; você devia ser homem. O seu irmão é tão bonzinho, quietinho, não me dá trabalho; ele devia ser mulher.’”
            Procurou, também, justificar a questão de classe que abordou no seu trabalho, ligando-a com sua trajetória de vida, cheia de sacrifícios: “Mas eu tive uma vida muito dura, viu! Nossa Senhora!”
            Em 1967, no dia da defesa da livre docência, a situação ficou muito tensa. Alguns dias antes, um dos membros do conselho estadual de educação, que ficara doente, levou para o hospital a tese dela e a leu. Concluiu que era uma tese comunista e quis mudar toda a banca. Fez muitas acusações e conseguiu mudar alguns membros. Mas, de acordo com ela, no dia da defesa “(...)  estava assim de gente pelo chão, pelas escadas, ônibus de outros campi lotados... E a banca foi muito rigorosa. Mas o meu grande sucesso foi que eu tirei dez com todos, inclusive com aqueles membros da banca que eles tinham mudado! Um desses, além de ser anticomunista, era papa-hóstia... E eu desço a lenha na Igreja Católica, e desceria em outras também. E houve uma troca de fogos muito grande entre nós; ele gritava de um lado, eu gritava do outro! Mas, no fim, ele reconheceu.”
            Defendida a tese, ela não tinha pretensões de publicar: “(...) porque nós estávamos em plena ditadura. Mas, aí, o Saffioti, meu marido, foi para o Rio de Janeiro tentar publicar a livre docência dele. Então eu falei: ‘bom, já que você vai ao Rio, você leva a minha para o Zahar, pra editora Zahar.’ Pois você acredita que a dele não saiu e a minha saiu!!!” É importante destacar, entretanto, que o livro não foi publicado pela Zahar, mas pela Editora Vozes.
            Sobre a repercussão de seu livro, ela conta: “Foi muito resenhado na Europa também, pois a editora publicava em Nova Iorque e Londres simultaneamente. Houve resenhas que eu mesma não pude ler, as pessoas tiveram que traduzir para mim, porque eu não leio alemão. Penso que teve uma boa acolhida porque, apesar de eu ser uma ilustre desconhecida na época, fiz algo que ninguém fazia, que era usar o método do materialismo histórico aplicado ao estudo da mulher.”
            Sim, é verdade, seu livro teve grande repercussão. Inúmeras pessoas que se identificaram com o feminismo, nos anos setenta, falam que leram o livro de Heleieth Saffioti. Albertina Costa, por exemplo, narrou em depoimento que, quando estava no exílio em Lisboa, participou de um grupo de consciência que incluía esse livro em suas leituras.
            Mas Heleieth confessa que, quando escreveu o livro, não se considerava feminista. Isso ocorreu mais tarde. E quando admitiu, julgou necessário justificar que tipo de feminismo era o seu. O preconceito da época a fazia ter cuidados nestas identificações. “Então, chegou uma hora em que eu admiti que era militante feminista. Antes me convidavam muito para falar na televisão. E, antes de dizer que era feminista, eu dizia: ‘eu quero explicar o que é feminismo.’ E explicava. Porque chegou uma hora em que eu tomei consciência de que eu tinha que assumir, mesmo que tivesse que explicar, em todos os lugares, que o meu feminismo não tinha nada a ver com o feminismo radical americano, que queria uma sociedade só de mulheres. Então, eu explicava sempre. Porque, naquela época, era terrível ser tachada de feminista. Era sapatão na hora! Era a primeira coisa que acontecia!”
            Foi esta mulher, intelectual, professora, pesquisadora, que nos recebeu em São Paulo, na noite do dia 02 de agosto de 2005. Morava, na época, sozinha em um grande apartamento próximo à Praça da República. Sua casa, com estantes cheias de livros em vários lugares, lembra a residência de muita gente envolvida com pesquisa. Estava com 71 anos. Em vários momentos, parecia uma menina. Falou de seus vários livros, de suas aulas – que tanto gostava –, tinha paixão pelo ensino. Ofereceu chá e bolo. Uma boa anfitriã. Sua morte, em 2010, deixou uma grande lacuna.





[1] Professora do Departamento de História da UFSC
[2] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas