sábado, 19 de outubro de 2013

Um filósofo entre nós

Um filósofo entre nós

Postado em 06 de Outubro de 2011 às 09:10 na categoria Caleidoscópio
Por: Carla Mimessi

A principal proposta do blog “Devaneios Culturais” é justamente abrir espaço a diferentes olhares: olhares voltados às mais variadas facetas do homem e suas manifestações, voltados à história que ele tem escrito e àquelas que ele rascunha em seu dia a dia, às vezes com os gestos, com o contato, com a tolerância ou seu avesso, a generosidade ou antônimo, enfim, nos pequenos atos em que construímos um amanhã para nós mesmos ou para aqueles que nos cercam, ainda que de forma imperceptível.
A partir dessa semana, teremos no blog um novo tema para reflexão: a sociedade e o gênero, assunto que tem norteado as notícias semanalmente, sobretudo em sua face mais agressiva — a intolerância diante da diversidade.
No século passado, uma nova mulher se teceu lentamente: ela rompeu amarras, se liberou, ganhou o mercado de trabalho e, sem perceber, abriu uma lacuna, subverteu os fios e as tramas de uma rede social até então segura e aparentemente bem-acabada. Mais uma vez, o rearranjo social terá que ser repensado, refeito, diante dessa nova realidade, que automaticamente reflete no gênero masculino que, como ela, terá que se reinventar.
É exatamente sobre esse tema tão rico e inquietante que Wlaumir Doniseti de Souza, filósofo também graduado em Pedagogia, mestre em História e doutor em Sociologia vai discorrer semanalmente no blog “Devaneios Culturais”. Wlaumir já publicou o livro "Anarquismo, Estado e pastoral do imigrante" pela Editora da UNESP, pesquisou imigração, igreja e partidos e eleições e, atualmente, estuda as relações de gênero e é membro do Grupo de Trabalhos de Gênero da ANPUH (Associação Nacional dos Professores Universitários de História).
Wlaumir: é um grande prazer tê-lo por aqui!
Fico feliz em poder contar com sua contribuição literária, sobretudo com o foco em um tema tão rico e necessário, como a questão dos gêneros nessa nossa incipiente e tumultuada sociedade pós-moderna. Tenho certeza que seus textos serão fundamentais para fundar um novo espaço de pensamento sobre o tema e incitar a reflexão.

A sociedade e os gêneros

A sociedade e os gêneros

Postado em 06 de Outubro de 2011 às 16:10 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza

Ilustração: obra de Speltri (2007)

Sociedade e gênero é o indicador deste blog. Mais amplo impossível. Afinal, a abordagem da sociedade comporta toda e qualquer produção humana no presente ou no passado. E, por qual motivo não, os sonhos que nos lança ao futuro? Todavia, ao abordar a sociedade daremos ênfase, mas sem exclusividade, à questão das relações de gênero; as relações entre homens e mulheres; homens e homens, mulheres e mulheres e, se preferir, entre o masculino e o feminino em suas múltiplas formas e modos de relacionamento em sociedade.
obra de Speltriobra de Speltri
Muitos homens consideram a questão de gênero como assunto menor. Não por acaso, a área é dominada por mulheres. Neste sentido, debate-se a questão das masculinidades diante de uma platéia masculina que pouco ou nada ou reflete sabe de si mesma, quer seja hetero ou não.
Neste campo os equívocos não são poucos. Mesmo intelectuais renomados e reconhecidos até fora do País incorrem em equívocos ou análises ligeiras que evidenciam o quanto a questão é complexa e demanda atenção. O psicanalista Contardo Calligaris, para dar um exemplo impar, reconheceu à época do caso Geisy Arruda, 2009, que o feminismo (leia-se pesquisa de gênero) ainda tinha muito a contribuir, embora, no passado, houvesse considerado que a participação feminista com a sociedade havia cumprido seu papel e poderia “encerrar-se”. Ledo engano.



Hoje, 06 de outubro de 2011, as questões das relações de gênero permanecem relevantes e urgentes nas análises e considerações que possibilitem, para além das letras, políticas públicas e sociais que viabilizem a conscientização e realização de que a sociedade é de todos e todas em suas múltiplas manifestações. Para ficar apenas nos exemplos desta semana, no campo da violência de gênero tivemos um ataque a gays na Av. Paulista e o assassinato da estudante pelo ex-namorado advogado.
Apenas estes casos e os acima elencados justificariam a relevância do prisma sociedade e gênero neste Blog. Mas, para além da violência física, se debaterá as sutilezas das relações de gênero que constrói e impõe realidades tão impares que são notadas apenas quando ausentes.

Maternidade em debate em “A vida da gente”

Maternidade em debate em “A vida da gente”

Postado em 13 de Outubro de 2011 às 11:10 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza
A novela “A vida da gente”, no dia 06 de outubro, levou ao ar uma cena de embate entre a heroína e sua negação. Como não poderia deixar de ser, a violência e sua ocultação – pela defesa dos valores dominantes (?) – simultânea foram a regra. O confronto teve tal impacto que o site da emissora selecionou a seguinte frase como momento de destaque da trama: "E se você é esse monstro, que abriu mão da sua própria filha em nome da sua carreira... eu não sou, ouviu bem?" (Ana dizendo para Vitória que sabe do seu grande segredo – “A vida da gente”).
ana e vitoriaana e vitoria

 A frase não poderia ser melhor para ilustrar um dos dilemas mais gritante e silenciado pela ordem ao longo da história: 1- até que ponto a mulher tem o controle de seu corpo no que diz respeito à reprodução? E, 2- teria a mulher direito de entregar seu filho a terceiros e seguir a vida?  A cantilena propalada de que a pílula teria resolvido a primeira questão não se efetivou no mundo real completamente. No que diz respeito à segunda, e pouco divulgada, a legislação atual prevê o direito da mulher de livremente escolher manter a criança junto a si ou encaminhá-la para adoção. Para além destas formalidades os conflitos não são pequenos.
 Não me deterei no fato de que a novela não informou a mulher telespectadora do direito, no Brasil, de, na maternidade, abrir mão da criança e manterei o foco no debate da maternidade envolvida na frase e que está balizada num embate de gerações.



 A heroína engravidou sem planejamento num contexto onde a mulher já está inserida no mercado de trabalho e com acesso a procedimentos racionais de não concepção – a pílula, o preservativo e defende a afeição maternal quase como a afirmação da essência da feminilidade enquanto experiência insubstituível e única da mulher. No lado oposto, a anti(?)-heroína viveu um contexto diferente, marcado pelos avanços da mulher no espaço público e que mantinha a responsabilidade pela criação dos filhos como responsabilidade quase que exclusiva, e o acesso  restrito aos meios racionais de contracepção. No passado contextual da anti(?)-heroína negar a maternidade era uma reação a autoridade patriarcal, uma tentativa reflexiva de romper com a obrigatoriedade exclusiva da função feminina de ser mãe como imposição natural.
 Todavia, nos tempos atuais, a heroína encontra um novo contexto e desfere duros golpes no passado, representado pela anti(?)-heroína, que possibilitou a construção da maternidade atual em uma conjuntura onde a coerção social ao não desejo de ser mãe permanece forte, mas aceita a maternidade enquanto escolha que não exclui – por completo – da vida profissional. Assim, é um jogo violento e assimétrico, posto que vividos em tempo social e político diferentes, em que a maternidade não atinge de modo igual as mulheres retratadas.
Todavia, um ponto chama a atenção. A Vitória está separada de seu contexto por uma heroína chamada Ana (aquela que separa) que anuncia os tempos novos, o da parentabilidade que só se viabilizou devido às “Vitórias” do passado. Neste ponto, o príncipe encantado entra em cena com a defesa da divisão equitativa das responsabilidades parentais, ou seja, pais e mãe assumiriam as responsabilidades no que diz respeito ao rebento. Em outros termos, o problema seria a mulher e não o homem, visto que o debate da maternidade na novela estaria protegido pela confraria das mulheres àquilo que só lhes diz respeito: a maternidade e neste ponto não politiza o debate, antes, apenas o sentimentaliza numa moralização barata distribuída em farta quantidade às adolescentes que assistem à novela.

Presidente ou Presidenta?

Presidente ou Presidenta?

Postado em 20 de Outubro de 2011 às 11:10 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza
Somos controlados por padrões culturais de comportamento, pensamento e sentimentos. Todavia, somos capazes de perceber essa dominância quando, por algum motivo ou razão, estamos em desacordo com a norma ou esta nos desprestigia, entre outros, confirmando-se, assim, que existe a possibilidade da liberdade e da superação dos modelos implantados.
femininofeminino

 A forma mais elaborada de dominação é a linguagem, falada ou escrita, mas com ênfase na segunda. Não é por acaso que o Estado detém o controle formal da gramática, cabendo a ele a possibilidade de reforma ortográfica entre outros privilégios no controle da norma. Todavia, a sociedade pode reagir a este controle por variados meios, como a criação de palavras e usos não regulamentados. Constitui-se então um embate aparentemente inofensivo, mas de alcances nada modestos.
Neste sentido poderíamos retornar à discussão 1) dos livros didáticos com linguagem coloquial; 2) o uso dos termos ocupação ou  invasão quando se borda a questão do MST e outros movimentos sociais; 3) quando diz-se que ocorreu um bate-boca ou discussão ou debate. O termo utilizado, mais do que relatar o que ocorreu no mundo, indica uma tomada de posição que pode ir do pessoal passando pelo partidário ao ideológico.



O problema maior é quando o ouvinte ou leitor não é capaz de refletir ou elaborar os significados neste campo de disputa dos sentidos e significados. Neste ponto a questão de gênero não fica de fora, pelo contrário, evidencia o quanto a mulher pode estar sob uma dominação que a constrange ao segundo lugar da cidadania. Um exemplo simples é o uso  do masculino para se falar englobando o masculino e o feminino. O simples fato de não existir tantas palavras de uso duplo, quando ao gênero, evidencia que o homem viria/vem em primeiro lugar na cidadania. Neste ponto, gostaria de salientar um desses embates lido ou ouvido todos os dias.

supremacia supremacia

No início – e não apenas ali – do Governo Dilma Roussef (PT) esta anunciou que preferiria ser chamada de presidenta. Era para ser algo simples, uma vez que previsto na norma erudita a forma presidenta da palavra, mas se complexificou a questão. O fato das mídias adotarem o termo presidente – no masculino – evidencia uma tomada de posição de mão dupla. A primeira de que está na oposição ao governo e, a segunda, e menos visível, é que os meios de comunicação estão acordes de que o feminino existe para ser controlado, dominado e explorado e não para presidir ou ser cidadã de primeira classe ou igualitária. Agora pense que palavra você usa – presidente ou presidenta – e veja de que lado você está, não só da questão partidária, mas, nas disputas por espaço, cidadania e ideologia.

Quando a vida não imita a arte!

Quando a vida não imita a arte!

Postado em 27 de Outubro de 2011 às 16:10 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza

wanessa x rafinhawanessa x rafinha


A pior frase do mês possivelmente será esta: “Eu comeria ela e o bebê”. O autor, conhecido pelo diminutivo, demonstra logo a que veio  - infantil e irresponsável na “arte” de insultar. No insulto projetam-se polêmicas construídas como meio de se projetar com mídia gratuita. Tem dado o resultado esperado - uma farta publicação de comentários e uma legião de seguidores ávidos por aquilo que, em uma parte do gênero humano, parece existir em excesso. 



O Sr. Hocsman, de 34 anos, conseguiu, em poucas palavras, atacar boa parte das crenças sociais defendidas por pessoas dos mais diferentes matizes e, aliou, contra si, até os críticos de parte delas, no Brasil, conseguindo o beneplácito apenas dos machões de plantão que tem como alvo principal “afirmar” que as mulheres são todas disponíveis para os seus desejos e no tempo deste.  
Vejamos alguns dos possíveis significados, mais explícitos, da frase: o desejo masculino por relações sexuais com mulher grávida – e neste ponto transa-se com dois ao mesmo tempo - e, para os mais vigilantes, a pedofilia. O segundo sentido foi negado pelo humorista (?) ao lançar, em mídia gratuita on-line, piadas sobre “fraldinha” e outras mais em uma churrascaria. Ficamos, assim, com um aspecto a ser aprofundado, o desejo manifesto pela mulher – mãe/esposa/artista –  e suas implicações.
Ao “flertar “com Wanessa, em público, Rafael superou as fronteiras da família em seus moldes tradicionais.  A reação da emissora veio no formato de “censura” advinda do receio de enfrentar a “mão invisível do mercado”. Esta mão será a do marido influente e “ultrajado’? Assim, se não temos censura estatal, e a gritaria é geral quando se fala em controle social da mídia, não se pode dizer o mesmo do mercado.
Os rumos poderiam ser outros se Wanessa não tivesse, contraditoriamente, se manifestado contrária a sua personagem cantora. A cantora manifesta uma mulher decidida, dona de seu corpo e de seu desejo, livre para decidir suas experiências. Mas, como a vida não imitou a arte, a pessoa Wanessa gritou – via processo –  que em sua vida pessoal sonha com os velhos lemas: boa esposa, boa mãe. Só faltou boa dona de casa.
Assim, a cena total é machista. Rafael, por dizer que ao macho cabe a tudo dominar e penetrar, sem fronteiras. A Wanessa, ao ser enquadrar como boa mãe e boa esposa, renegando publicamente a personagem que representa. Ao marido, por defender sua “honra” de único proprietário do corpo da esposa.  E, pensar, que tudo poderia ser apenas(?) arte(?). 

Nobel da PAZ reconhece esforço de gênero

Nobel da PAZ reconhece esforço de gênero

Postado em 03 de Novembro de 2011 às 10:11 na categoria Caleidoscópio
Wlaumir Donsieti de Souza

Alfred Bernhard Nobel (1833-1896), inventor e cientista sueco, deixou em testamento a indicação de que se organizasse uma fundação para premiar as pessoas que mais houvessem contribuído para o desenvolvimento da humanidade. A fundação foi instituída em 1900 e, no ano de 1901, estabelecido o Prêmio Nobel que visa, desde então, reconhecer os esforços e realizações nas áreas da paz, da química, da literatura, da física e da medicina. No ano de 1968, passou a laurear, também, na economia.
nobelnobel


As pessoas reconhecidas por suas atividades recebem da Fundação um diploma Nobel e uma medalha Nobel em ouro, além de uma importância em dinheiro que varia conforme as receitas do ano, em 2011 o valor foi de US$1,5 milhão. Mais importante do que todos os prêmios está o reconhecimento público planetário da dedicação sistemática com contribuição relevante para o presente e o futuro da humanidade.
Em 111 anos de história o Prêmio Nobel laureou 44 mulheres, destas, 12 foram referentes ao Prêmio da Paz. Ao longo de uma história de mais de um século, pouquíssimas mulheres tiveram seus esforços reconhecidos quer para a paz, ou em outras áreas. Como se isto não bastasse, há casos de mulheres que contribuíram para a realização de seus maridos e que não foram se quer citadas em suas biografias.
As vencedoras, de 2011, do Prêmio Nobel da Paz, foram as liberianas Leymah Gbowee, militante, e a Presidente Ellen Johnson Sirleaf e a iemenita militante Tawakkol Karmam. O reconhecimento do trabalho destas mulheres eleva o prestígio das mulheres na soma de esforços e realizações pela igualdade de gênero enquanto meio para se construir a paz, dos direitos humanos, da democracia e da segurança das mulheres em seus países, mas com modelos de atitudes não violentas que poderiam ultrapassar fronteiras na busca de resultados cada vez mais positivos.
Se, por um lado, o prêmio a estas mulheres é o reconhecimento do fato de que em muitos países a situação da mulher é no mínimo opressora e, em alguns casos, desumana, por outro, demonstra que a sociedade internacional está atenta às possibilidades de mudança cultural, em alguns casos milenares, em favor da mulher enquanto busca da igualdade democrática de direitos formais e de fato. Tarefa nada fácil, pois, mesmo olhando para o ocidente Europeu e Americano a situação, sobretudo entre as camadas mais pobres ou discriminadas por etnia ou sexualidade, no quesito gênero, é de causar vergonha a qualquer democrata digno deste nome.

Escravidão – uma sobrevivência histórica - no século XXI

Escravidão – uma sobrevivência histórica - no século XXI

Postado em 11 de Novembro de 2011 às 09:11 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza

Uma das mais antiga e vil forma de organização e exploração do trabalho é tomada na escravidão. Em diferentes modalidades, foi encontrada nas mais diferentes culturas ao longo do tempo. Da Grécia antiga, que nos legou a Política, a Democracia e a Filosofia - entre tantas outras contribuições humanas das mais elevadas – aos dias de hoje, a escravidão é uma permanência histórica com matizes os mais diferentes.
As senhoritas de Avignon de Picasso As senhoritas de Avignon de Picasso
Enganam-se os que pensam que a libertação, 1888, dos africanos e seus descendentes, no Brasil, sob pressão da Inglaterra e de outros países, colocou um ponto final na questão. Estamos muito distante deste ponto final e, talvez, nunca o encontremos no mundo real.
No ano de 1814 a França e a Inglaterra assinaram o Tratado de Paris que abordava a problemática do tráfico de negros escravizados. Era o marco de uma legislação internacional que até os dias atuais se aprimora na busca de por fim a escravidão e/ou tráfico de pessoas. 
 Todavia uma questão de gênero sobressai no século XX e se estende até o hoje. O marco, neste sentido, é o “Acordo para a repressão do tráfico de mulheres brancas”, em 1904, Paris. Era o reconhecimento de um fato há muito escamoteado: o tráfico de mulheres – sobretudo brancas, mas não exclusivamente – o que denunciava uma posição étnica excludente à européia – para a exploração da prostituição. E, em 1947, outro elemento é reconhecido como problemático, ao lado do tráfico de mulheres estava o de crianças. Outros acordos e convenções vieram depois, todavia, a questão não foi resolvida.
Para se ter uma noção da dinâmica envolvida: a terceira maior lucratividade ilegal é o tráfico humano, perdendo para contrabando de armas e drogas. E, o Brasil é um dos maiores “fornecedores” de mulheres nas Américas e ponto de apoio à rede internacional – com destaque para adolescentes. 
De acordo com o Relatório da Organização Internacional de Migrações (OIM), referente ao ano de 2006, no mundo, o tráfico de mulheres rende por volta de 32 bilhões de dólares, sendo a maior parte do recurso advindo da prostituição escrava. Dentre estas mulheres escravizadas, aproximadamente a metade não sabe estar sob escravidão.
A dificuldade de se combater o tráfico e a escravidão sexual são devido ao tipo de cliente que atende, passando por profissionais liberais a ocupantes de cargos estratégicos no Estado. Não é a toa que se pode ver publicidade nas ruas e avenidas de casas que oferecem o serviço. A prostituição não é crime. Crime é o que pode estar em torno, silenciado pela violência imposta aos corpos enfileirados e, por vezes, incapaz de pensar a própria situação ou possibilidade de escape.


Cultura em trans-form(a)cão...

Cultura em trans-form(a)cão...

Postado em 23 de Novembro de 2011 às 16:11 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza

A cultura heteronormativa se construiu ao longo de séculos com o apoio de diversas instituições – Igreja(s), Estado, Medicina... Nesse processo de construção de um modelo discursivo que se pretendia(de) verdadeiro, único e normal, a dicotomia ou bipolaridade dos adjetivos dos sexos e suas práticas foi um ponto primordial.
foto de Hans Braxmeierfoto de Hans Braxmeier
Assim, mulheres seriam dóceis, submissas, não violentas e “naturalmente” destituídas do prazer sexual. Os homens seriam fortes, dominadores, violentos e teriam no sexo uma “necessidade natural” a ser satisfeita. E tudo, bem azeitado pela ótica do sobrenatural. 
Para garantir esta ordem, que privilegiava o macho-masculino que dominava(?)/controlava(?)/explorava(?) a fêmea-feminina, os esforços não foram poucos. E, para que todos soubessem que a vigilância era constante nem mesmo heróis e heroínas foram poupados no decurso da história construtora da heteronormatividade. Que o diga Joana D´Arc – condenada por travestismo. 
Todavia, a resistência a esse modelo assumiu diferentes manifestações ao longo dos séculos. No tempo presente, aquilo que era o ponto chave para se exercer a dominação se transmutou em elemento de oposição quase vitoriosa - a reconstrução social dos discursos, das práticas e seus significados faz parte deste processo onde o Bullying é um elemento a ser considerado.
Assim, as mulheres passaram a utilizar o que as dominava - a não violência – como questão central de resistência. Tem dado tão certo que padrões de violência antes celebrados publicamente têm tendido a patologização. Os gays – no arco-íris de diversidades, e não apenas eles – assumiram como obra prima da resistência o humor, a alegria. Os resultados são visíveis em face de uma sociedade sisuda onde temos a efervescência da extroversão. É claro que essas transformações não se deram apenas pelos avanços do feminino sobre o masculino e seu modelo de sociedade; mas, é um elemento de mudança inegável.
O exemplo do bullying é um caso que demonstra como a resistência do feminino tem avançado. Poderíamos analisar as brincadeiras masculinas que hierarquiza(va)m os machos desde a infância e, por vezes, para alguns, mesmo na idade madura e/ou avançada. Essas brincadeiras historicamente estiveram associadas a relações de força, dominação, certo grau de sofrimento e violência. Não por acaso, ouve-se um coro masculino a dizer “na minha época passávamos por isso ou aquilo e não era bullying” ou “havia essas questões e nem por isso somos  `patológicos’”.
A passagem de um modelo cultural predominantemente masculino, para um em que o componente feminino ganha espaço fez com que essas “brincadeiras” que mediam força e violência fossem reinterpretadas. O que outrora era “natural” passou a ser visto como uma construção social equivocada.
Em outros termos, assistimos a ascensão do feminino e seu discurso que, como fizera o masculino no passado, apresenta novos modelos que agora são institucionalizados com o apoio de outras tantas instituições e seus saberes, entre eles a medicina, a psicologia e tantas outras.

Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher

Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher

Postado em 01 de Dezembro de 2011 às 11:12 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza

As violências possíveis no campo do humano são dos mais diferentes naipes. Da mais explicita, a física, às mais sutis – por vezes, mais devastadoras: a simbólica – quando os valores femininos e suas posturas e práticas são ridicularizadas ou condenadas ou inferiorizadas; a econômica – quando são privadas do acesso a recursos e seus derivados – manifesta quando familiares ou tutores negam dinheiro, herança, uso e fruto, e mesmo, a mais simples compra de produto ou serviço; a moral, quando baseado nos valores dominantes masculinos são expostas a comentários depreciativos de suas condutas a partir do molde tido como honroso; a sexual, que passa pelo estupro ao sexo consentido por insistência ou ameaça de fim de relacionamento da parte do parceiro – este, um outro tipo de estupro; a política – que nega a visibilidade, o espaço público e políticas públicas específicas de direitos humanos. Entre outras!
Gravura da artista plastica Micaela CyrinoGravura da artista plastica Micaela Cyrino
25 de novembro elevado a Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher no ano de 1981, em Bogotá, em meio ao I Encontro Feminista da América Latina e do Caribe, em honra a mulheres assassinadas pela ditadura dominicana – mas não apenas ali –, é um marco na visibilidade e na transformação da sociedade ancorada na dominação, controle e exploração da mulher punida violentamente quando não alinhada aos modelos impostos e, em alguns casos, por diversão. 
Quase duas décadas depois, em 1999, a Assembléia Geral da ONU elevou o 25 de novembro a Dia Internacional para a eliminação da violência contra as mulheres, reconhecendo o marco feminista da não violência como elemento fundamental da dignidade humana feminina. A institucionalização data adota e propicia visibilidade a um problema escamoteado pela dominação masculina.
Todavia, na terceira década do 25 de novembro a questão da violência contra a mulher ainda não se equacionou. Para se ter uma idéia da dimensão do problema, de acordo com a Fundação Perseu Abramo, em 2010, a cada 24 segundos uma mulher foi espancada – ou seja, a violência mais visível, mas não a única. Pior do que isto é a constatação de que os violentadores são, em sua maioria, pessoas conhecidas da mulher: pais, irmãos, maridos, namorados... em especial no espaço do lar. Ou seja, para além da “Família Sagrada” – feliz e harmoniosa, tem-se a “família real”.
Como se isto não bastasse, neste teatro dos horrores, devemos lembrar que o fato da necessidade de se aprovar a lei Maria da Penha, em 2006, demonstra o quanto instituições que deveriam estar vinculadas a defesa do humano – independente de seu sexo ou sexualidade - não o fazia no que dizia respeito às mulheres ou ao feminino: as togas e seu cortejo.

Heleieth Iara Bongiovani Saffioti (1934-2010)

Heleieth Iara Bongiovani Saffioti (1934-2010): notas autobiográficas I

Postado em 19 de Dezembro de 2011 às 11:12 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza
Pra mim, Heleieth era, e ainda hoje é, como um mito na Sociologia produzida no Brasil. Um mito que tive o privilégio de conhecer no terreno público e, parcialmente, no privado.
Meu primeiro contato com o nome dela foi durante o doutorado na UNESP de Araraquara. Ouvi a referência sobre Saffioti de outra grande professora – Lucila Scavone. Ambas estavam unidas pela pesquisa e a militância referentes às questões de gênero. De certo modo, pode-se dizer que Heleieth seria a primeira geração e Scavone a segunda geração que pesquisava as relações de gênero no Brasil.
De certo modo, Heleieth Saffioti era anunciada no campus da FFCL de Araraquara  como uma das mulheres intelectuais mais influentes do século XX, no Brasil. Mas, não apenas por aqui. Meu fascínio pelas idéias que ela defendia foi tamanho que sempre pensei na possibilidade de conhecê-la pessoalmente.
HeleiethHeleieth
Conhecer se traduz por uma fórmula muito comum no universo acadêmico - estar em uma conferência e ouvi-la. Foi o que fiz no ano de 2000, em um Congresso realizado na PUC da capital paulista. Um misto de acaso e contexto histórico. Como de hábito, ao chegar ao congresso realizei a primeira atividade, selecionar quem ouvir e aonde ir. Afinal, ali se encontram os mais renomados amigos e os oponentes de idéias e praticas. Em meio a programação, lá estava no nome de Heleieth Iara Bongiovanni Saffioti.
Fui ao grupo de trabalho para ouvi-la. Jamais havia visto uma foto dela. Cheguei antes de a porta ser aberta para as atividades e aguardei no corredor. Em pouco tempo, chegou uma senhora elegante. Estando apenas nós ali, ela iniciou a conversa sem que nos apresentássemos e foi logo inquirindo o que estava a fazer ali, em uma reunião do grupo de estudos de gênero.
Contei-lhe o real propósito: conhecer Heleieth Saffioti. A conversa se alongou o suficiente para que ela soubesse de minha admiração e minha posição sobre as questões do grupo de estudos. A reunião começou sem que soubesse quem era aquela senhora elegante e instigante.
Ao iniciar a reunião, uma revelação.  Ela era Saffioti. Fui pego de surpresa ao chamarem-na. Surpresa maior foi saber que ela havia sido “eleita” para a presidência da ASESP (Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo) para aquele biênio. Ela anunciou que aceitaria se um amigo pudesse ser o secretário. Ao que todos aceitaram. O amigo era eu!!!! Havíamos nos conhecido a menos de meia hora!!!
Saímos na busca de reorganizar a ASESP – na época com a ajuda de Francisco, um ex-orientando dela – e a primeira meta foi preparar, na Biblioteca Mário de Andrade, com o apoio do Colégio São Paulo, o evento “Globalização, 11 de setembro, democracia”, que foi realizado no dia 13 de novembro de 2002.
Conviver com ela foi um privilégio. Uma aprendizagem cotidiana. Um debate ininterrupto de idéias e práticas. Uma esperança renovada na igualdade de gênero. A cada encontro, no apartamento localizado na Praça da República, São Paulo, as possibilidades de interpretação do social, do humano eram multiplicadas. Era fascinante partilhar horas com aquela mulher altamente intelectualizada e humana.
No dia 14 de dezembro de 2011, completa-se um ano do falecimento de Heleieth Saffioti. Ainda tenho a certeza de que o mundo ficou mais triste. Obrigado pelas aulas privadas e públicas. Apesar de homenageada das mais diferentes formas, ainda falta o verdadeiro reconhecimento que, para mim, seria a organização de uma universidade com o nome dela.

Salvo melhor juízo

Salvo melhor juízo

Postado em 28 de Dezembro de 2011 às 14:12 na categoria Caleidoscópio
Wlaumir Doniseti de Souza


Faz parte da História do Brasil recente a República Velha, a Nova República, entre outras denominações. Elemento interessante é que não contamos com nomeações que valorizem o termo Democracia – como, por exemplo, Nova Democracia. Isto não é mero acaso. 
pintura de Eugene Delacroixpintura de Eugene Delacroix
As designações de períodos históricos do Brasil dão ênfase na centralidade do Estado na capacidade de dirigir não apenas a vida pública, mas, em boa medida de gerir os significados e as qualidades da vida privada, de modo pouco democrático, para além das formalidades eleitorais. Assim, não se tornou possível alcunhar períodos com ênfase no termo democracia.
Como fator decisivo, nesta República que também diz atender por democrática, para manter a ordem fez-se necessário organizar uma longa engenharia institucional que encontra sua forma mais lapidar no direito, na lei. Esta ordem legitima de direito, mais republicana que democrática, foi planejada de maneira a manter os andares superiores, quer das classes sociais ou de carreiras estratégicas fundamentais para a manutenção desta ordem, em situação confortável nos mais diferentes sentidos: passando pela lei de falência, a questão dos recursos processuais quase infinitos; a privilégios legais de determinados cargos ou funções de Estado, sem falar no salário.
Nesta pirâmide da ordem, a toga e seu cortejo ocupam um espaço central. O debate do que seria direito e o que compõe privilégio nesta área poderia gerar terabyte de informações. E, poderia passar totalmente despercebido pelo cidadão comum se não fosse o caso atual do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O CNJ foi organizado no ano de 2004 – muito tarde diante da CPI do judiciário de 1999. O simples fato de institucionalizá-lo já era uma demonstração de que nos andares superiores do Estado e da nação os problemas não eram nada pequenos para se manter a ordem. Se havia suspeitas, a gritaria atual contra os procedimentos da Ministra Eliana Calmon evidencia que a problemática pode ser bem maior do que se poderia conjecturar.
Possivelmente, o maior crime de Eliana Calmon é tentar fazer funcionar uma instituição que poderia ser honorífica. Traz a tona uma problemática, a de que quase metade dos juízes de SP não apresentou suas declarações de renda entre outros detalhes como fortunas pagas para subsidiar moradia. Como se isto não fosse pouco, temos ainda o fato de que alguns preferem desqualificar – do ponto de vista machista – a Ministra com argumentos nada profissionais. Isto se faz ao utilizar expressões como atitudes “emocionais” ou busca de “calma” nos procedimentos. Ou seja, nas entrelinhas históricas do poder do macho leia-se: “ela não tem as qualidades necessárias (as masculinas de racionalidade) para o posto que ocupa”.
Num trocadilho, poder-se-ia inferir: a calma levará a um acordo; o emocional a mais um impulso por uma república mais democrática onde os privilégios não são tolerados, sobretudo quando estes são instaurados no uso inadequado de direitos. Não à toa que a liberdade na Revolução Francesa foi representada por uma mulher com um dos seios de fora.
Feliz Ano Novo!

Do machismo quase (nada) cordial

Do machismo quase (nada) cordial

Postado em 30 de Janeiro de 2012 às 11:01 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza **

Crodoaldo Valério (Marcelo Serrado) personagem da novela “Fina estampa”, o Crô, tem suscitado as mais diferentes posições quanto ao modo como o homossexual é retratado na televisão. Nada de novo! A cada novo programa com um(a) personagem LGBTTs vem à baila o debate do quanto contribui para a aceitação/tolerância/exclusão/perseguição à comunidade homoafetiva.
crocro
Para pensar a “questão Crô”, um grupo de homens – heterossexuais –, em programa de rádio em Ribeirão Preto, criticou a visão estereotipada do gay no folhetim e do risco disto aos seres humanos em questão no cotidiano. Em outros termos, do quanto os estereótipos poderiam gerar maior violência, a famigerada homofobia.
 O interessante era que os debatedores “não percebiam” que valorizam outro estereótipo,  o do gay de classe média que para ser tolerado à convivência se submete e reproduz em  público o comportamento dominante heteronormativo e, por vezes, reproduzindo a exclusão de outros gays. Destarte, o grupo heterossexual – em sua boa vontade – reproduzia a exclusão que criticavam em outro naipe, o do machismo (quase) cordial. Ou seja, tolera-se o gay desde que cumpra as regras do grupo dominante com um comportamento que aparente a heteronormalidade. É exatamente isto que o personagem Crô não faz. 
Os debatedores se prestassem atenção ao símbolo do Movimento Gay, o arco-íris, perceberiam que busca representar a fluidez das formas de manifestação humana, e mesmo animal, de sexo e da afetividade.  Deste ponto de vista, o Crô personagem faz parte de um mundo real violentamente negado quer pela força física dos machões de plantão, quer pela força simbólica dos machistas (quase) cordiais.
Mesmo parte da “Comunidade” Gay critica a forma “Crô” de ser. Isto evidencia como o comportamento sexual dominante é o do macho dominante com as mais diferentes implicações nas práticas sexuais e afetivas mesmo de parte dos LGBTTs que interiorizaram a cosmovisão dominante do macho heterosseuxal. Assim, o machismo tem seguidores mesmo nas fileiras gays. Para se ter uma idéia disto basta pensar o fato de que gays “discretos” tendem a não conviver em público com os gays “assumidos”.
Os debatedores salientavam o fato da novela, escrita por um gay, prestar um desserviço a Comunidade LGBTTs. Todavia, o que não perceberam era que, também eles, prestavam um desserviço ao criticar a “feminilidade” do personagem. Traduzindo em miúdos o que seria ou é feminino seria inferior. 
Por outro lado, é de se notar que pouco ou nada se fala de outro estereótipo na novela – no machão hipermasculinizado (dominador, violento, excludente, isolado, solitário e, por vezes, dado a bebedeira) – Baltazar. Este, sim, um risco social às mulheres.
 Para finalizar, uso uma frase de Bertold Brecht: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas, ninguém chama violentas as margens que o comprimem”. Resumindo a ópera, gay, sim; feminino, não. Haja machismo invisível aos olhos dos (quase) cordiais.

Das “ricas”

Das “ricas”

Postado em 10 de Fevereiro de 2012 às 17:02 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza



Uma série de fatores se somou à eclosão da Revolução Francesa, dente eles a fofoca. Baseadas em alguns aspectos reais, o boato acrescenta ou mesmo reinventa o ocorrido ou o dito. Não por acaso, o diz-que-diz-que antecedeu a Revolução Francesa, denunciou as festas, os bailes, as orgias e a opulência da nobreza e de seus cavaleiros e cavalheiros. 
maria antonieta foi decapitada na revolucao francesa maria antonieta foi decapitada na revolucao francesa
Como não poderia deixar de ser, na longa história da discriminação e dominação das mulheres, um dos alvos prediletos do falatório revolucionário foi a Rainha com seus hábitos e costumes. Deste ponto de vista, guilhotinar a soberana estrangeira com todos os seus símbolos de distinção face aos franceses era uma questão de honra para muitos homens que não pouparam esforços para que Revolução Francesa não alterasse as relações de gênero – que o diga Olympe de Gouges.
Assim, a fagulha que faltava para sublevar o povo miserável, doente e faminto contra a monarquia foi o estilo de vida esnobe face aos “sacrifícios” vividos pelos burgueses para produzir, comerciar e enriquecer e, como não poderia deixar de ser anunciado, gerar trabalho/emprego para os seres humanos dos andares abaixo. Põe abaixo nisso!
Passados mais de dois séculos, a nobreza aprendeu que suas trocas simbólicas – que ainda perduram – não poderiam ser vistas por todos, quer fossem capitalistas ou proletariados, súditos ou cidadãos. E, neste ponto, elaborou toda uma ritualística de legitimação em que usar roupas de magazines é apenas um dos intrincados detalhes. Esta ritualística é tão importante nos tempos da “ditadura mercantil-cidadã” contemporânea que até a primeira dama dos EEUU faz o mesmo. Em nome da manutenção da posição na cobertura do edifício social a elite das elites controla, em público, o que pode ser visto e notado por todos – diria mesmo, até publicado. Não à toa surgiram @s model@s profissionais pagos para exibir o que apenas alguns consomem.




as "mulheres ricas" foram decapitadas pelo capitalismoas "mulheres ricas" foram decapitadas pelo capitalismo


A festa das “Mulheres ricas”, no Brasil, evidencia que a lição não foi aprendida – quer no sentido supracitado, quer no sentido feminista. Não por acaso, uma das protagonistas ridicularizou as conquistas de tantas ilustres mulheres que a antecederam numa frase ligeira. Em resumo, embora componham certa elite econômica não são portadoras de outros símbolos como uma educação capaz de dar conta dos significados do mundo contemporâneo e os desafios da mulher no século XXI em face de sua história de opressão, dominação e exploração. Pelo contrário, compactuam com esta história ao desmerecer a atividade cidadã das mulheres que as antecederam e que, graças a estas, as mesmas “mulheres ricas” podem hoje escolher entre a arte de produzir jóias, arquitetar, pilotar ou “esnobar”.
Mas, o que realmente choca é o fato de que o programa banaliza e mesmo “critica” tantas teorias que asseveram que “uma vez resolvidas as questões de subsistência” a tendência seria a busca de questões “´espirituais´” devido a uma certa “hierarquia das necessidades”. Não, a futilidade venceu! O capitalismo decapitou suas senhoras e as transformou em vitimas da futilidade – por “escolha própria”. 
Em outros termos, se, no passado, as mulheres tinham na vestimenta uma das poucas formas de expressar suas emoções em público, as que hora podem muito mais que isto abriram mão do direito conquistado pelas feministas em nome do poder que lhes é concedido: o de repetir a exploração e a dominação do macho com as classes dos andares de baixo.

O risco mora ao lado?!

O risco mora ao lado?!

Postado em 01 de Março de 2012 às 16:03 na categoria Caleidoscópio
Wlaumir Doniseti de Souza



A democracia tem algumas parceiras históricas sem as quais não seriamos a sociedade que tem laborado para existir desde o Iluminismo. Dentre estes parceiros os mais propalados são a liberdade – em suas múltiplas facetas –, a igualdade e a racionalidade. Para além destes há consortes menos alardeados, sem os quais não seriamos o ocidente que somos: secularidade e laicidade.
fogueira fogueira
Conceitos controversos, de longa duração na disputa face ao Estado, às Ciências e à sociedade, podem ser abordados, de modo ligeiro, como sendo a secularização a busca de uma explicação, atitude ou modo de ser sem a influência da religião ou de qualquer divindade; já o laico seria a busca de pessoas capazes de, mesmo sendo religiosas, abordar as questões que estão fora do campo religioso de modo imparcial quanto às crenças que possui. Em outros termos, o laico poderia ser religioso no espaço privado; o secular nem mesmo ai encontraria guarida o denominado sagrado.
Graças (nenhum trocadilho com a religião) a tais conceitos e posturas laicizantes e secularizantes é que podemos ir a médicos sem correr o risco de sermos vistos como infiéis; ou falarmos sobre nossos desejos afetivos, emocionais, intelectuais e sexuais sem acabar na fogueira; que as mulheres e gays puderam avançar na conquista e reconhecimento de seus direitos sem serem acusadas (por todos, claro) de satanismo ou bruxaria ou bestialidade.  A lista é quase infinda e gera um consenso, não há igualdade de gênero possível onde a religião é um bastião inquestionável.



A disputa por espaço (ou seria controle das mentes) da secularização e da laicidade com a religião não está superada em pleno século XXI (da era cristã, olha a religião, mais uma vez) apesar de, no século XIX e XX ter encontrado pessoas capazes de embaralhar as cartas em favor do pensamento crítico.
Não por acaso S. Freud – misógino (?) – ao abordar a sexualidade humana foi publica e duramente criticado e recriminado. Freud tocava em uma ferida fundamental do pensamento judaico e cristão – o papel do sexo e da sexualidade. Todavia, foi incapaz de ir além e libertar a mulher de uma posição desfavorável, apesar de contribuir com o pensamento laico e secularizante.

marisa lobomarisa lobo
Na política partidária o desafio não foi menor. O principal alvo das críticas foi a Igreja Católica que passou de “dona do Estado” à dama privilegiada. Neste contexto, e na contramão do processo, vemos, no Brasil, mas não apenas por aqui, a ascensão de “partidos políticos evangélicos” intransigentes com a laicização e a secularização. Sabe-se, hoje, de estudantes universitários que saem da sala de aula quando qualquer crítica é feita ao pensamento religioso ou quando determinados pensamentos entram em conflito com a doutrina religiosa; outros colocam fones de ouvido e passam a ouvir cânticos, sem contar os que ouvem uma fórmula gravada pelo seu dirigente espiritual para exorcizar a pessoa docente em desvio ou mesmo leem seu texto sagrado durante a aula.
É neste amplo contexto que vemos o caso da “Psicóloga” Marisa Lobo. Diante da “estratificação social” legitimar-se, em boa parte, pelo diploma universitário e, mais, tornar determinadas formas de pensar válidos, busca-se o diploma universitário como trampolim social, sem permitir a influência dos princípios racionais da Ciência, quer secular ou laica. Mais que isto, como os diplomas são requisitos para determinados concursos públicos cumpre-se o ritual, mas sem alterar qualquer forma de pensar e sentir atrelado ao religioso.
O desafio não é pequeno. Não por acaso que estes grupos falam mais de Deus em suas entrevistas e atividades “profissionais” do que em ciência. Seus pensamentos e posturas não seriam aprovados por seus pares acadêmicos diante da inverificabilidade do que asseveram. Todavia, em boa medida, distribuem e consolidam preconceitos sem perceber, no caso das mulheres, que pregam contra si mesmas. 
Como pensamento autônomo no Brasil é um privilégio de poucos, bem poucos mesmo, colhe-se o que se plantou em nossas redes de ensino: um pensamento ligeiro, nada crítico ou reflexivo para além do acho. E, mais, chancelado por igrejas que controlam com “voto de cabresto” boa parte de seus fiéis. Ou aprimoramos nossos modelos educacionais ou a ignorância vencerá como tem demonstrado o fato de psicólogos que agem em detrimento de sua ciência. A equação não é fácil quando assistimos os mais diferentes políticos partidários se ancorando em igrejas e templos para se sufragarem.

Inocentes úteis...

Inocentes úteis...

Postado em 09 de Março de 2012 às 17:03 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza
Considero que um dos maiores dramas dos seres considerados ou que se entendem como dominados, explorados ou excluídos é conseguir saber até que ponto se é o que se quer ser ou se é o que os outros querem que se seja. Esta uma questão nada fácil de equacionar. Sartre considerava que o relevante era saber o que se fez de si mesmo a partir do que foi feito com cada um. 
dia da mulherdia da mulher

Em outros termos, todos somos reféns de nossa história trançada nas relações sociais e culturais, todavia, podemos transformar parte do que nos fizeram ser em algo que desejamos ser. Tarefa árdua a que muitos se negam ao primeiro sinal de um pensamento crítico, face aos desafios e possíveis coerções sociais ou subjetivas.
Neste intricado vir a ser, sendo o que nos fez e nos edificando no que nos tornaremos, penso o dia da mulher, o “8 de março”. A data erigida como marco das mulheres que defendiam e ainda defendem a emancipação feminina – considerada incompleta pelas feministas e ratificada pelas pesquisas especializadas – encontra-se entre o limite da demanda por direitos e a confraternização típica dos estabelecidos no e pelo sistema de dominação da mulher.
Fiquei impressionado com a quantidade de postagens na internet sobre o dia das mulheres. Entretanto, o que mais me impressionou foi a limitada interpretação do dia enquanto pensamento feminista. Assim, li várias mensagens que eram tudo, menos engrandecedoras dos direitos da mulher, uma vez que enfatizavam exatamente a dominação por meio de estereótipos em que a sensibilidade, o afeto, a ternura, e outros elementos eram valorados como o principal foco do dia das mulheres. Elementos denunciados como parte de instrumentos de controle das mulheres pelas feministas.




Desenho de Debora Vaz Desenho de Debora Vaz
Assisti a tudo isso como quem vê o dia do trabalho tornar-se o dia da esmola trabalhista. No dia do trabalho, em que o trabalhador deveria apresentar a agenda de demandas, vemos a distribuição e passeio de bicicletas, sorteios de prêmios aos funcionários, shows patrocinados pelo Estado e outras coisas medonhas que fazem tudo para desarticular o trabalhador e evitar qualquer ação que faça frente ao sistema capitalista.
O dia da mulher tornou-se, em boa medida, com raras e meritórias exceções, o dia da desarticulação das mulheres. Dão-se flores, bombons, parabéns como se fosse um dia de confraternização, como o dia das mães, o natal, ou coisa parecida. Até poderia tornar-se um dia de confraternização apenas, mas tão somente quando as demandas das mulheres estivessem satisfeitas. 
Para a minha compreensão, foi um dia monótono na trilha do machismo que faz suas vítimas. Desarticularam-se as mulheres sem que estas o notassem em favor de um “parabéns” que nada muda ou transforma. Assim, quem fará de si o que se deseja se o desejo está colado ao dominador e explorador?
Quanto aos casos meritórios de organização feminina e feminista nada se noticiou para além de notas rápidas, afinal, se as mulheres percebessem o que ocorreu no seu dia não seríamos mais a sociedade que somos.

“Presente!”

“Presente!”

Postado em 19 de Março de 2012 às 17:03 na categoria Caleidoscópio
Wlaumir Doniseti de Souza
E se você soubesse que aquele “velhinho” simpático que mora em frente a sua casa e brinca com seus filhos era um torturador? E se você soubesse que o seu pai ou avô era um estuprador em nome da ordem e do Estado? E se você soubesse que não é filho dos seus pais, mas que foi retirado à força de uma mulher grávida, no cárcere? E se você soubesse que aquele senhor respeitável que ocupa a função de ministro da eucaristia, padre ou pastor foi um informante do regime que levou ao extermínio pessoas que lavoraram pela democracia, pela liberdade e pela igualdade; e, pior ainda, consolaram a família em meio à tragédia do desaparecimento para continuar a informar? E se você soubesse que o seu ascendente era um violentador sexual de homens encarcerados? E se você soubesse que aquele tio, primo,  dentista, psicólogo ou médico instruiu os piores procedimentos para a obtenção da “verdade”, sob tortura? Ou que aquela foto histórica de família ao invés de ser um símbolo de honra e distinção fosse uma prova dos laços históricos entre torturadores e estupradores oficiais?
cartum de Lattuf cartum de Lattuf

O direito à memória é uma das questões mais sutis da humanidade. Não nos faz falta quando a temos, conscientemente. Mas, nos constrange dolorosamente quando nos falta. Veja o caso de crianças órfãs de famílias que perderam tudo nas enchentes, de pessoas que são removidas em nome do progresso do local em que sempre viveram os seus ascendentes.
No Brasil, o direito à memória é banalizado e mesmo rejeitado. Se focalizarmos em Ribeirão Preto, por exemplo, há a demolição e o abandono das casas das elites que foram ou seriam patrimônio cultural. Ou, pior, a ausência de manutenção das velhas casas onde moravam os mais pobres, a começar pelos imigrantes europeus que colaboraram com a construção do que somos hoje. Se falarmos do direito à memória do negro e do índio, então, a perversidade humana se desvela em sutilezas terríveis demais para apagá-las.



É exatamente para não enfrentar ou alterar a ordem destas questões que tantos militares têm vindo à tona de pijamas para dizer não à Presidenta Dilma e à sistemática organização do governo para que se proceda a transparência no que diz respeito à memória de tantas famílias que foram vilipendiadas em seus direitos mais fundamentais durante o Regime Militar. Se estes mesmos militares consideram que prestaram serviços tão relevantes à Pátria, à Nação e ao Estado deveriam estar felizes com a “Comissão da Verdade”. Todavia, estes distintos senhores temem aquilo que, por vezes, e em número nada insignificante, alguns deles esconderam de vizinhos, amigos e familiares, o possível lado mais sombrio de torturador, de perseguidor e outras mazelas desumanas em nome de certa “civilização”. 

vitimas da ditadura vitimas da ditadura

Não deixa de ser simbólico e materialmente relevante que uma Presidenta viabilize esta questão. Afinal, para dizer numa linguagem que possivelmente seria mais compreensiva à parte mais retrograda dos de pijama, alguém tem “peito” para enfrentá-los e dizer à Nação o que todos desejam, enfim, o que realmente fomos e onde estávamos durante o Regime Militar.
Aos nazistas foram feitas estas perguntas: onde estava, o que fazia, quem apoiava? Aos ditadores dos mais variados países da América Latina também o fizeram. Aos ditadores árabes e seus asseclas, atualmente expulsos do poder, se fazem estas perguntas. Mas, assim como no fim da escravidão fomos os últimos, infelizmente corremos o risco de sermos os últimos também a termos o direito à memória.
Enquanto isto não acontece, as famílias dos desaparecidos, dos que “enlouqueceram”, dos que se “suicidaram”, e os militantes resistem à insistência estatal de manter ocultos os bastidores da ditadura respondendo “Presente!” em coro todas as vezes que os nomes dos desaparecidos são citados, uma forma de lembrar que eles podem não estar ali fisicamente, mas estão representados por aqueles que nunca se esqueceram. E, agora, finalmente, com o apoio da Presidenta que enfrenta forças nada desprezíveis.

Escravas da natureza?

Escravas da natureza?

Postado em 03 de Maio de 2012 às 10:05 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza 

A deliberação do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 12 de abril de 2012, de que o aborto de feto anencéfalo não constitui crime é um marco na história do Brasil e nas “contradições” do Poder Judiciário.
Na trilha histórica do Judiciário fica claro que o Legislativo, no Brasil, não é capaz de representar os direitos das minorias a ponto de responder rápida e eficientemente aos seus clamores e valores sociais. Assim, o Legislativo ocupa-se de representar as maiorias, quer sejam estas as numéricas ou as de poder – neste último caso pode significar uma parcela super privilegiada da sociedade com poder econômico para impor-se de diferentes maneiras e quase sempre imperceptível. Nos dois casos fica patente que o cálculo eleitoral é mais importante ao Legislativo que a construção de uma sociedade mais justa, livre e igualitária e, portanto, DEMOCRÁTICA.
mulheres gravidas de steve gribbenmulheres gravidas de steve gribben
O Judiciário ergue-se, assim, como uma das poucas possibilidades das minorias se fazerem ouvir e respeitar. Isto é no mínimo contraditório visto que assistimos estupefatos a decisão sobre as meninas estupradas. Estas foram negligenciadas em seus direitos subjetivos à infância e a proteção pelo fato de estarem em prostituição. Deste prisma, sexo com meninas menores de 14 anos não constitui crime, estupro, se estiverem em situação de prostituição. Pergunto, e se fosse com meninos menores de idade, qual seria a decisão?
A contradição poderia ser maior se analisássemos lado a lado o caso de não se considerar o aborto de anencéfalo crime e o das meninas em situação de prostituição. Mas, a contradição é apenas aparente. Nos dois casos o macho é o privilegiado. Em outros termos, seria a natureza o destino?
Para lançar luz a este procedimento compararei com o processo de libertação dos seres humanos escravizados no Brasil. 



O manto do discurso naturalizante consolidava o direito à propriedade dos corpos escravos com milhares de implicações ainda reinantes. Semelhantemente, faz-se o mesmo com a imposição da maternidade à mulher – é natural. Não por acaso cunhou-se a expressão “mãe desnaturada”, pressupõem-se que ser mãe é algo natural e, portanto, fora do contexto social e histórico. Engano grosseiro este disseminado pela sociedade conservadora e mesmo retrógrada e seus pares institucionais. Ser mãe é um fruto de desejo histórica e socialmente ancorado, portanto, nem toda mulher é obrigada a ser mãe do ponto de vista subjetivo, embora a maioria das mulheres possa reproduzir do ponto de vista biológico.
O fim da escravidão foi um processo “lento e gradual” que durou aproximadamente meio século. O mesmo ocorre, mas em tempo muito mais dilatado, ralentando com o direito reprodutivo da mulher. E, aqui, a aparente contradição do STF se desfaz. 
Como no lento processo de encerramento da escravização humana formal – o primeiro atendido não foi o interesse do escravizado, mas do senhor —, no tempo presente se reproduz o processo com os direitos reprodutivos da mulher. Ou seja, o fim da escravidão se iniciou atendendo mais aos interesses do dono de escravizados, uma vez que o liberou dos escravos improdutivos. O mesmo ocorre com os direitos reprodutivos femininos. Nos casos até agora legais se atendem em primeiro lugar a demanda masculina e a feminina por contingência. 
No caso de aborto por estupro, tenta-se privar o macho de sustentar publicamente um rebento que não é seu. A mulher agradece por essa possibilidade. No caso de risco de vida da mãe, não se quer privar o macho de sua fêmea. E, a mulher agradece. No caso de anencéfalo, se evita um processo oneroso e desgastante do casal e, mesmo, de privação da possibilidade de novos rebentos. A mulher mais uma vez agradece. Mas, ainda paira longe a verdadeira libertação da escravidão biológica que se quer dizer também cultural — o ser mãe. Afinal, isto só será uma conquista inteiramente feminina quando o aborto for plenamente legalizado. 
Não por acaso, um dos machos no tribunal  - Ayres Britto – referendou frase histórica do movimento feminista ao dizer: "o grau de civilidade de uma sociedade se mede pela liberdade da mulher” e continuou “se os homens engravidassem, a interrupção da gravidez de anencéfalo estaria autorizada desde sempre”.
Mas, mesmo aí, as consequências sociais permanecerão, pois o discurso naturalizante das diferenças sociais e de gênero é um dos mais enraizados e difíceis de superar da propaganda conservadora e reacionária e, por isto mesmo e justificando-se face a estes, a fala geral foi de que o Poder Judiciário em nada autorizava o aborto para além daquele debatido.

Socializar perdas, privatizar lucros

Socializar perdas, privatizar lucros

Postado em 21 de Maio de 2012 às 17:05 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza
Houve um tempo no qual se disse que quando as mulheres estivessem no poder uma nova ordem poderia surgir: um modelo original de exercício do poder, jovens possibilidades se expandiriam no humano. Interessante notar que esta observação, até certo ponto, reverberava o machismo ao ratificar uma idéia implícita de que a mulher teria características intrínsecas – no caso, morais – que a conduziria a um tipo de administração em que as virtudes de seu sexo se fariam evidente.
Passados mais de duas ou três décadas deste tipo de discurso, as falas atuais tendem a buscar a igualdade de gênero defendendo as especificidades do ser humano como um todo. Homem ou mulher, fêmea ou macho, entre outras diversas possibilidades, o que se observaria seriam as características humanas. Assim, ter-se-ia o humano honesto ou não, ético ou não, e estes, entre outros adjetivos, não seriam fruto da questão de gênero única, exclusiva e simplesmente, mas de uma dimensão complexa de constituição do humano singularizado na pessoa, “independente” de sua identidade de gênero.
Caricatura de Ivan Caricatura de Ivan

Neste contexto participamos da primeira presidência do Brasil realizada por uma mulher – Dilma Roussef – e note-se o quanto a gramática do poder permanece a mesma, independente do gênero e do partido. 
No ano de 2002, Lula e o Partido dos Trabalhadores lançaram a “Carta ao povo brasileiro” que, grosso modo, asseverava que se cumpririam as regras estabelecidas pelos contratos. Foi a abertura do caminho para a presidência, uma vez que acalmava “os mercados” financeiros e editoriais.
O anúncio das mudanças nas regras da poupança, em maio de 2012, demonstra o quanto a “Carta ao povo brasileiro” – que bem poderia ser a “Carta às elites capitalistas” – é seguida a risca. Vamos a uma ligeira interpretação desta engenharia institucional econômica que independe de gênero.
Vivemos, desde a implantação do Plano Real, um ziguezague dos juros, caracterizado pela seguinte fórmula: juros baixos no segundo semestre: quanto mais perto das festas de final de ano, mais baixo possível. Logo depois, os juros sobem para conter os gatos e manter a inflação “sob controle”. Em algumas dessas passagens os juros chegaram a quase estrangular as galinhas e quebrar seus ovos antes mesmo de virem ao mundo.
Para tentar sair deste ciclo e ao mesmo tempo proteger o Brasil da crise (sistêmica?) do capitalismo das economias centrais a escolha foi impulsionar o consumo nos andares de baixo, afinal, boa parte das camadas médias estão endividadas por anos com a casa própria e o carro de porte médio.



Assim, o primeiro passo foi a queda na taxa de juros selic, num momento em que o mercado dizia não ser a tendência. Ou seja, o governo de Dilma se adiantou a uma crise crescente que teria choque cada vez mais explícito sobre o Brasil. Como isto não foi suficiente para conter os impactos no mercado interno, deram-se mais passos: o governo federal instruiu os Bancos Federais Estatais a baixarem os juros e com isto influenciarem os bancos privados a uma “disputa pelo mercado”. O resultado ainda não fora aceitável para garantir um crescimento mínimo com inflação contida. Assim, a engenharia institucional, a razão instrumental, apresentou-se com mais uma inovação: alterar as regras da caderneta de poupança para incitar o consumo.
A mudança nas regras da caderneta de poupança – principal ou único investimento das camadas mais pobres – visou garantir que os grandes investidores não migrassem seus recursos para a poupança, assim, pagar-se-á menos aos mais pobres por suas economias como modo de garantir que os mais ricos permaneçam com seus investimentos onde estavam. Todavia, se a selic cair consideravelmente, a poupança se tornaria antieconômica do ponto de vista capitalista.
Veja bem, a escolha poderia ser pela limitação no valor investido na poupança, a, por exemplo, dez mil reais por “CPF” e isto deixaria os mais pobres com um tipo de investimento lucrativo. Mas, não, se escolheu a via punição dos menos privilegiados.
Em breve, se a taxa de juros Selic cair abaixo de 8,5% os pobres ver-se-ão compelidos – por uma engenharia institucional – a consumir pelo simples fato de que suas economias não se multiplicarão. Deste modo, socializam-se as perdas e impulsiona-se a privatização do lucro para manter a economia em conformidade ao acordo da “Carta” independentemente de gênero e de partido. E, não raro, os mais pobres comprarão cacarecos que em nada ampliarão o seu patrimônio, visto que dos aproximadamente 98 milhões de brasileiros que têm poupança, cerca de 50% têm, em média, R$ 100,00 aplicados. Vê-se, desse prima que a gramática do poder independe, até o presente momento, de gênero.
Para encerrar cito a referida “Carta”, para vermos o quanto ela se mantém atual e uma crítica aos seus próprios escritores que reafirmam o modelo de socializar perdas para privatizar os lucros, modelo este em que os que mais sofrem são mulheres, negros e idosos:
“Nosso povo constata com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta e, principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras.
O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se. Por isso, o país não pode insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral.
O mais importante, no entanto, é que essa percepção aguda do fracasso do atual modelo não está conduzindo ao desânimo, ao negativismo, nem ao protesto destrutivo. Ao contrário: apesar de todo o sofrimento injusto e desnecessário que é obrigada a suportar, a população está esperançosa, acredita nas possibilidades do país, mostra-se disposta a apoiar e a sustentar um projeto nacional alternativo, que faça o Brasil voltar a crescer, a gerar empregos, a reduzir a criminalidade, a resgatar nossa presença soberana e respeitada no mundo”.

Xuxa e as vadias

Xuxa e as vadias

Postado em 28 de Maio de 2012 às 17:05 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza 
Não deixa de ser emblemático o fato de que a exposição da vida privada de Xuxa tenha ocorrido uma semana antes da Marcha das Vadias. Diversas hipóteses foram elaboradas: desvio da atenção pública do caso Cachoeira; lucro certo; saída do ostracismo; mídia gratuita com o escândalo; aproveitamento da memória dos que não podem mais falar; entre outras. Não sou surdo a estas possibilidades, entre outras, mas prefiro trabalhar com outra versão, já que nenhuma delas será a verdadeira.
silencio impostosilencio imposto

No tempo presente alguns defendem que o auge da vida é aos 40 anos, outros aos 50, seja qual for a realidade, Maria das Graças Meneghel já subiu os degraus da vida e inicia a descida da escada da existência, sobretudo artística. Raras mulheres tiveram o percurso dela, como muito bem salientou a entrevistada. Do alto da escada da vida, ela pode fazer o que bem menos mulheres puderam: olhar para trás e dizer publicamente os abusos pelos quais passou. 
Fiquei atônito com o relato de vida no que tange aos possíveis abusos, estupros e pedofilia. Simultaneamente fiquei admirado com a re-elaboração da memória que possibilitou, se não a superação, ao menos certa resiliência. Todavia, o meu choque foi maior ao entrar no facebook e ver a repercussão entre os respeitáveis telespectadores – banalização total dos relatos. Fiquei inquieto com a banalização dos estereótipos de abusos propiciados pela cultura patriarcal machista, em detrimento da vítima.
Trocando em miúdos, fez-se em público o que se faz nas “alcovas”, culpar a vítima. Não raro é isto que ocorre com as mulheres abusadas pelo mundo a fora: se foi estuprada era devido ao fato de estar onde não deveria! Se foi estuprada é por que deu mole! Se... é porque utilizava roupa inadequada! Se... é por culpa da vítima.



Contra tudo isso que se levantaram as mulheres neste sábado, dia 26 de maio de 2012, na denominada “Marcha das Vadias”. A Marcha das Vadias ou Movimento “SlutWalk” ou Movimento das “Vagabundas” teve início em maio de 2011, no Canadá, após algumas estudantes universitárias resolverem protestar diante do fato de um policial dizer que elas não deveriam se vestir como “vagabundas” para que não sofressem abuso ou estupro.
O protesto deste ano, na Avenida Paulista e em 14 cidades brasileiras, é contra o sistema patriarcal vigente e seu modo mais explícito, o machismo, com frases do tipo: “O que é ser mulher nos dias de hoje?”, “Não fui eu quem veio da tua costela. Foste tu que vieste do meu útero.”, “Feminismo é a idéia radical de que mulher também é gente.”. A Marcha do dia 26 de maio teve como mote as implicações da Medida Provisória nº 557, que Institui o Sistema Nacional de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento da Gestante e Puérpera.
A Marcha é contra todos que pressupõem um lugar limitado e específico para a mulher que, entre outras demandas, impõe a cumplicidade do silêncio da mulher violentada, vitimizada e inferiorizada por seu sexo. 

xuxa xuxa
O silêncio rompido por Xuxa vai contra toda a cultura dominante do macho, branco e heterossexual e por isto foi tão criticada, afinal, dava voz a uma infinidade de seres violentados em tenra idade. As e os machistas de plantão que se submeteram a ordem e a reproduziram não faltaram ao questionamento de Xuxa: qual a razão em falar agora? 
A atitude emancipadora seria, contrariamente a postura que se generalizou, vamos fazer desta voz poderosa um norte em campanha contra a violência sexista machista e seus desdobramentos como o combate à pedofilia, ao estupro, à homofobia, o abandono parental, entre outros. O ponto alto poderia ter sido a Xuxa na Marcha das Vadias entre outras tantas mulheres públicas – sem trocadilhos históricos.
Só para se ter uma noção do impacto da fala de Xuxa – e de outras mulheres com carreiras bem-sucedidas que poderiam vir à baila —, a denúncia de abusos sexuais cresceram mais de 30%, num total de mais de 285 mil ligações entre segunda e terça-feira, após as declarações de Meneghel. Muito mais do que várias Marchas poderiam fazer sozinhas e muito menos do que várias Marchas poderiam fazer sem o apoio das autoridades femininas públicas quer fossem da arte, da política, da economia, da liderança de bairro.
Xuxa foi ridicularizada em público, pois, insurgiu-se contra um modelo que reproduziu em favor do macho. Lamentável não vestir a camisa e ir rumo aos movimentos sociais e realmente fazer algo significativo para além da “caridade” com desconto em imposto de renda. Venceu a ordem?!?!