domingo, 23 de agosto de 2015

O poder da crise ou “apesar da crise”

Não nos enganemos. O capitalismo é um sistema de crises e as atuais crises política, econômica, elétrica e hídrica, entre outras, cumprem o papel fundamental do sistema de concentrar capital ou extrair capital do cidadão consumidor e trabalhador.
Uma das frases mais citadas nos últimos noticiários tem sido que ocorre investimento das grandes fortunas privadas “apesar da crise”. Não é apesar da crise e sim devido a crise. A crise gera as oportunidades de investimentos com alto retorno devido ao baixo índice de empregabilidade que possibilita menores salários e menos direitos sociais. Maiores vantagens em acordos com o Estado, como isenções e financiamentos a maior prazo e com menores juros, existência de capital a ser aplicado por investidores sedentos por lucros imediatos, entre outros fatores que favorecem o capital privado e esgarça o sistema de proteção social, de direitos trabalhistas.
Exemplo típico deste “apesar da crise” é o 11 de setembro dos EUA. Enquanto muitos choravam seus mortos, outros tantos a perda do emprego, muitos mais temiam os impactos da “doutrina do medo” ancorada no terrorismo; alguns poucos planejavam e efetuavam lucros multibilionários com a previsão da ascensão do mercado de armas, ouro e petróleo. Assim, em frações de minutos algumas economias evaporaram e fortunas se consolidaram.
O cassino do capital não para; mudam os jogadores e até os edifícios que sediam os jogos, mas, a febre alucinada por mais lucro não cessa. Isto o que ocorre agora com o Brasil. Após anos de avanços sociais, políticos e econômicos chegou a hora do grande capital apresentar a fatura e recolher os lucros vendendo ações, clamando por redução de custos e ampliação da idade de aposentadoria sem maiores ganhos monetários para mantê-los ativos no mercado. Até a família vê ceder seus direitos com a redução da parte a ser paga ao pensionista. Nada fica de fora do lucro, da concentração de renda.

Neste ponto a crise política no Brasil cumpre o papel de reduzir direitos sociais e trabalhistas, entre outros, da seguridade social, em nome da empregabilidade, da redução do custo Brasil, em outros termos, em nome da ampliação da extração do lucro do trabalho assalariado para maior competividade no planeta em condições semelhantes aos dos piores países socialmente falando.
As crises hídrica e elétrica retiram do cidadão comum parte fundamental de seu salário e com isto subsidia as grandes empresas que podem fazer acordos para manter-se no Estado ou no município com  redução de custos. E, com isto, “apesar da crise” não se expande o direito ou se incentiva a produção de energia solar nas residências pois retiraria o consumidor do papel passivo de ficar sem recursos e colocaria como agente do mercado e ampliador de seu renda, ou seja, inverteria o papel da crise que é concentrar o capital e ampliar a exploração.
A crise política por sua vez escamoteia o sentido das ações políticas ao grande público tentando ocultar o poder das engrenagens econômicas no comando da política que é financiada pelas grandes fortunas durante a campanha e, por vezes, mesmo depois. Neste ponto, nota máxima, a manifestação da FIESP e FIRJAN pelo fim da “crise política” ao lado de uma das maiores redes de comunicação conclamando pela governabilidade de Dilma acenam para o fato máximo: os objetivos imediatos de ampliação dos mecanismos de lucro e controle social foram atingidos cabendo ao Estado retornar ao ponto de ampliação da produtividade e consumo.

Todavia, nesta equação só não se contava com um aspecto surpreendente, a desvalorização da moeda chinesa. Um susto que pode tornar a crise espetáculo em crise de fato, mas, no ponto final, “apesar da crise” a crise para quem? Para o cidadão consumidor e trabalhadores que vive o choro e o ranger de dentes; aos donos do capital, apenas a rotina do cassino.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Questão de processo de acumulação

A sociedade humana tem se notabilizado pelas formas violentas de exclusão ao longo da história. Temos mais tempo de solução dos embates pelo uso da força que do diálogo. Temos mais tempo de abuso de poder do que de Direitos Humanos. Temos mais tempo de escravidão legal do que defesa da liberdade e da igualdade e da fraternidade para todos. Temos mais tempo de Direitos do Homem que de Direitos da pessoa (gênero e de diversidade e pluralidade). E assim segue.
                Não por acaso muitos são incapazes de compreender o mundo atual. Com uma educação formal de qualidade duvidosa a solução mais fácil para ser o engodo mais a antigo: o uso da força, do constrangimento, da perseguição, da exclusão social, da prisão.
                No que diz respeito a exclusão social vários países encontram problemas para escamotear sua distinção entre cidadãos de primeira, segunda ou sabe-se lá que fração de classe.
Este o caso da proibição de menores em Centros de Compras que por definição seriam espaços privados de uso público. Assistir  autoridades jurídicas que deveriam defender a criança e o adolescente acabam por primar pela defesa do capital excluindo tais cidadãos de direitos da cidadania - exclusão por classe.
Ler que um juiz amplia a diferença étnica da comunidade negra – e não só desta – ao negar ao candomblé o estatuto de religião chamando-a de seita é ápice de um pensamento positivista, há muito criticado por suas limitações e discriminações, em favor de um grupo que se pretende dominante e em detrimento dos os outros, os não brancos, os não cristãos.

Perceber que a configuração do crime de racismo é letra morta, pois, a maior parte dos juízes são brancos e aos crimes de etnia e raça atribui o qualitativo de injúria, fazendo assim que a lei não tenha o efeito necessário e urgente diante de séculos de escravidão e de abusos diante da cor da pele que não a europeia é vexame internacional nas terras verdes e amarelas.
Ler diariamente, na mídia social mais popular do planeta, que além de homens – fato reiterado no machismo de plantão – mulheres atacam a presidenta exatamente por ser mulher e atribuir a isto a sua incompetência é a evidência do quanto a mulher branca das frações dominantes tendem a ser a maior parceira do machismo, como dizia Heleieth Saffioti, e reproduz uma violência da qual também é vítima no espaço privado e por vezes público.
E, no topo desta lista, fica o anseio desmedido de grupos que diante da violência reiterada da sociedade defende o nazismo, a ditadura e a exclusão como motes à luz do dia com a conivência cúmplice de instituições regidas por pessoas com convicções pessoais nada democráticas ou humanitárias.

                Temos muito que trabalhar educando para transformar a visão de mundo excludente em inclusiva, de discriminadora para plural e diversa, de coação para emancipação. Enquanto falarmos “deveria” e tivermos dificuldade de expressar o “poderia”... a liberdade será uma conquista e não um direito, apesar do adiantado da história.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Embates e manifestações

Alguns embates são milenares. Outros seculares. Embates Milenares assumem diferentes variações ao longo dos séculos. Este o caso da legitimidade da posição social, do status.
Uma das formas mais longevas de status é o nascimento. Do mundo grego, passando pela monarquia, aos “bem nascidos do capitalismo” é uma constante que encontrou diferentes formas de legitimação histórico-social-político-cultural-científico.
Ao mundo antigo e às monarquias interessavam o nascimento divinizado. Quer o herói grego – um semideus –, ou o nascimento de origem divina das monarquias absolutistas – mas, não como casos únicos na história – o papel do sagrado foi lapidar para a detenção do poder que subjuga, controla e explora a maioria da população. Num contínuum histórico do mundo antigo ao moderno o papel da religião foi fundamental para o controle social tido e havido como legítimo pela maioria das consciências.
Legitimar um mundo organizado, para os gregos, criado, para os cristãos, pela(s) divindade(s) foi papel desenvolvido pelas religiões clássicas e depois pelo cristianismo, primeiro católico e, posteriormente, também, protestante. Neste terreno o papel educador era predominantemente realizado pelas igrejas e seus anexos – conventos, mosteiros, escolas religiosas...
Todavia, a este poder divinizado que se escorava na estabilidade das relações sociais, econômicas, políticas e, sobretudo, na produção do conhecimento que não escapava aos limites do legitimado pelo poder, encontraria a crise em sintonia ao final do mundo moderno.
A substituição progressiva da nobreza e da realeza por outras forças na economia, primeiro, e depois, no poder de Estado, precisaria de outra ideologia – enquanto ciência das ideias – para legitimar-se no poder.
Não é mero acaso histórico que a obra de Charles R. Darwin, A origem das espécies, de 1859, tenha sido produzida depois da Independência dos EUA, 1776 – data da Declaração da Independência – da Revolução Francesa, 1789, entre outras datas republicanas que substituíram a monarquia como forma de governo legítimo e nobreza enquanto grupo de privilégios. 
Aquele mundo natural de ordem estável universal eterna da explicação religiosa, já não contemplava os interesses políticos, econômicos e culturais da nova classe que assumia o poder e fazia construir e impor sua visão de mundo. Neste ponto, substituir a ordem divinizada de saberes de verdades eternas imutáveis pela ordem científica de saberes provisórios era fundamento da legitimidade do poder que controla e explora a ordem social no capitalismo de tem como mote a circulação das classes - mais na teoria que na prática.
A origem das espécies traz uma ideia, primeiro ridicularizada pela religião e pela burguesia, devido ao seu poder original e exemplar, todavia, com o tempo, a elite capitalista e política das repúblicas notam seu papel legitimador da nova ordem em substituição a ordem monárquica. Embora a igreja permanecesse no discurso defendendo que o melhor dos regimes era a monarquia, na prática, esta perdia espaço a cada década.
Legitimar este processo histórico de substituição do poder historicamente construído e instituído  encontraria sua pedra de toque na ideia da evolução. Assim, a história seria uma evolução onde a transformação realizada pelos mais apitos iria se impor por uma questão de razão. Deste prisma evolutivo da sociedade humana, numa transposição grosseira do biológico para o cultural – Darwinismo social – a burguesia encontrou uma âncora para o seu poder. Os mais ricos, os mais adaptados a ordem capitalista e a seu modelo civilizacional seriam os que permaneceriam no jogo e a circulação das classes garantiria a equação.
Estas ideias, mais que criticadas pela humanidades, permanecem nas mentes e nos corações de muita gente que quer se auto representar e se autocompreender como ápice da elite evolutiva social, cultural, econômica e política. Neste ponto, parte-se para a deslegitimação e desconstrução de qualquer outro discurso que possa trincar o edifício “científico evolutivo” que tantos serviços prestaram e presta ao capital na legitimação de uma circulação das elites que pouco existe no plano real.
O Estado de bem-estar social seria uma das trincas deste edifício legitimador da ordem de controle e exploração da maioria no capitalismo republicano e democrático. Este Estado de bem-estar social visto no Brasil na letra da lei, há décadas, é o pomo da discórdia na política contemporânea. Mais ainda quando viabiliza de fato, e não apenas por direito, a ascensão de  frações de classes.
Certo grupo que se autocompreende como “elite” – não passando quando muito de classe média – se exaspera por ver como políticas públicas bem elaboradas, com eficiência e eficácia aplicadas, podem não ampliar o nível de status de todos, mas, antes, entendida como redução do nível de status das "elites tradicionais". A preocupação não é com o bem-estar coletivo, mas, com o sentimento privado de sucesso individual e individualista que se vê limitado pela possibilidade de uma parte da sociedade, que era mantida na miséria como plataforma de exploração ad infinituam, ser minimizada em seu grau de aviltamento.
Neste ponto de disputa, qualquer ator social que possa parecer “trair” sua classe em nome do bem-estar é severamente punido. Os exemplos não são poucos: o advogado fotografado em camisa sem mangas e vilipendiado como se fosse mais um dos disponíveis ao clamor de uma distinção entre os que podem ou não estar no aeroporto e voar; Jô Soares ao entrevistar a Presidenta foi ameaçado de morte; o príncipe da Sociologia FHC destratado por defender a possiblidade de inocência evitando o pré-julgamento que tanto agrada aos defensores do Estado de exceção, da Ditadura e do autoritarismo.

Estas vertentes de uso da força como meio de legitimar o poder, pensando que fazem parte da elite evolutiva que nunca existiu, apesar do nazismo que implica, é uma excrecência histórica no século XXI. Afinal, a democracia pode e deve conviver com o diverso, o plural, e neste incluso, o direito a vida e manifestação de nazistas, ditadores, autoritários e outros naipes ao mesmo estilo. O que a democracia não pode é permitir que estes grupos assumam o poder de legitimar a ordem e de tomar o poder. Mais que isto, a democracia precisa cumprir o papel de educar e evidenciar que por trás de nomes como “Brasil Livre” estão pontos de vistas duvidosos na referência democrática e um de seus baluartes, os Direitos Humanos.
Afinal, se o uso de termos belos à sociedade democrática – mesmo que evolutiva -  fosse garantia de bem-estar o lema do PCC poderia ser aplaudido em praça pública pelos incautos e desinformados: “Paz. Justiça. Liberdade”.

Ao sair as ruas nas próximas manifestações lembre-se, não pode os meios democráticos de participação, de liberdade, de expressão serem meios para legitimar a ausência de liberdade, de Direitos Humanos e do Estado Democrático de Direito.