sexta-feira, 17 de novembro de 2017

A palavra do ano de 2017: RETROCESSO

Enquanto para o senso comum, via votação pela internet, a palavra do ano é corrupção, defendo que a palavra do ano acadêmico é retrocesso, bem como para as políticas públicas, as relações de trabalho, a igualdade de gênero e de etnias tudo isto devidamente azeitado pelo pensamento e governo conservadores, para não dizer retrógrados. O atraso teima como parte de nossa matriz cultural política e um governo conservador do PMDB só fez crescer esta vertente cultural face aos progressivas quer na arte, na política(s) ou na economia.
Enquanto na Europa, do século XVI, o velho pacto entre Igreja Católica e Estado estava no início de sua lenta e progressiva decadência face ao secularismo e a laicização patrocinadas pelas raízes da ciência e até mesmo pela reforma protestante de Martinho Lutero, 31 de outubro de 1517; no Brasil, o velho modelo religioso de origem medieval era patrocinado via padroado. Este era um acordo político entre Roma e o Rei de Portugal onde caberia ao Estado o mando e o patrocínio sobre a Igreja local do Brasil.
Na Europa este tipo de acordo, que andava de mãos dadas com a compra de indulgências para salvar as almas, era criticado por aquilo que se chamaria depois, ao longo da história, por liberalismo construído em boa medida por burgueses e intelectuais laicos. A Europa mercantilista que se baseava no metalismo encontrou uma nova força para a sua prosperidade, a burguesia e o protestantismo, e iniciava o abandono das forças então retrógradas da nobreza aliada a Igreja e suas superstições que depreciavam o saber acadêmico, quando não o perseguiam.
A burguesia enquanto classe ainda não se fazia presente, mas seus germes eram em favor da dinamicidade econômica que se demonstrava cada vez mais viável via expansão marítima e da educação. Mas, para conseguir tal feito era necessária a aliança com a nobreza retrógrada, sobretudo no que tangia às colônias que deveriam ser profundamente exploradas em sua alma e corpo, e com as igrejas que controlavam os colégios via mosteiros e conventos. Mas, muito mais que isto, a burguesia precisava do que se chamaria depois de classe média – pessoas que sabiam ler, escrever e contar e para esta expansão o protestantismo foi fundamental ao defender a livre interpretação das escrituras que pressupunha o saber ler. Ou seja, em boa medida o protestantismo não se destinava aos mais pobres e ignaros.
Neste sentido, embora à burguesia europeia fosse mais proveitoso a aliança com intelectuais laicos e pesquisadores práticos, no Brasil a melhor aliança para a manutenção da ordem escravista e escravocrata era com a Igreja Católica, esta a mãe perfeita para o projeto explorador.
Não se abriram universidades no Brasil Colonial e os poucos afortunados que podiam enviavam seus filhos para estudos em Portugal onde conheciam as ideias burguesas que via de regra não colocariam em prática no Brasil consolidando nosso discurso metafísico do direito enquanto a política prática chafurda com os podres poderes da corrupção.
Para manter o atraso da Colônia o melhor caminho era a aliança com a Igreja que entrava em decadência na Europa, a Católica, face aos protestantes que flertavam em público com o Estado mercantilista, o metalismo, a matemática e o lucro da burguesia como práticas que evidenciavam as bênçãos de Deus. Invertia-se o discurso da Igreja Católica de usura e com isto protestantes colaboravam com os avanços do que se chamaria liberalismo econômico.
Da Colônia ao Império o padroado foi mantido e com ele todos os acordos com a Igreja Católica que garantiam os atrasos das gentes do Brasil e o controle via educação de conventos e mosteiros do pensamento das camadas favorecidas.
Apenas com a República e a tomada do poder por certos liberais e positivistas que a ciência passou a ter maior oportunidade no Brasil e, mesmo assim, apenas na década de 1930 inicia-se o projeto USP no Estado que se considerava a Locomotiva econômica e cultural, São Paulo, mas mantendo o acordo de educação de jovens nos colégios católicos, poucas eram as escolas laicas e secularizadas que poderiam fazer avançar a educação científica e suas práticas e valores.
Nestes moldes do projeto USP que se espraiaria lentamente pelo Brasil via universidades estaduais e federais, o liberalismo oligárquico branco e masculino mantinha-se como fundamento das ações e estratégias de poder da burguesia que fazia uma dicotomia entre a cultura de elite letrada e a popular de corpo religioso. Aos filhos dos bem nascidos economicamente ou mesmo intelectualmente estava destinada uma vida tranquila na academia mantida pelo Estado e na antessala da educação patrocinada pela Igreja Católica. Não por acaso que a única grande universidade privada do Brasil a conseguir fundos do Estado para educação foi a PUC.
Este projeto oligárquico de poder intelectual aliado ao poder econômico não fazia sombra ao velho projeto de dominação e controle social via religião recheada de preconceitos e discriminações implantados na Colônia, mantido no Império e dicotomizado na República. Mas a dicotomia entre os mais pobres educados pra fazer e obedecer e os melhores aquinhoados economicamente e educados para pensar e mandar apenas se aprofundou ao longo dos anos via saber universitário.
A sombra neste projeto de poder foi estabelecida pelo avanço sem precedentes da educação técnica e universitária sem no governo federal do Partido dos Trabalhadores. A expansão das vagas universitárias públicas fez avançar de modo reformado e reestruturado o projeto USP de uma elite intelectualizada e secularizada ultrapassar as fronteiras de classe e com isto vazar para a sociedade mais ampla, em especial, para os mais pobres, negros e LGBTTT.
Isto era e é um risco para o poder tradicional burguês do Brasil que via na religião seu modus operandi de controlar e explorar os mais pobres e o País. Para além das camadas médias que serviam de bom grado às elites em troca da vida tranquila e previsível economicamente, outras ascenderam à universidade e com isto ao pensamento laico e secularizado de padrão historicamente burguês, mas agora, sobretudo buscando romper os laços com o “colonialismo” tergiversado na República.

Frear tais forças de transformação social demonstraram-se urgente ao projeto oligárquico que se esboroava. Deste prisma, precarizar para desmontar as universidades públicas e as escolas técnicas federais passou a ser urgente para evitar a circulação das elites no Brasil, ao mesmo tempo que se corta a subvenção das faculdades privadas via bolsas de estudos. Havia agora uma massa crítica de doutores capazes de criticar a dependência e a corrupção, a mesma que fez o projeto Dilma Roussef naufragar.
Para tanto foi-se de encontro as forças mais conservados disponíveis na religião de fundo tradicionalista e dos evangélicos, estes mais subproduto que herdeiros do protestantismo, mas, no Brasil, inversamente mais conservadores e menos liberais; e especializados em “vender indulgências”, agora, para salvar o corpo, em paralelo a tudo isto, a aliança com as forças do agronegócio.
Desmontar os avanços da educação crítica, laica e secularizada tornou-se urgente para a burguesia brasileira e seus políticos de plantão uma vez que com a pesquisa avançada via inteligência nacional desconstruíam o poder dominante. Para além disto desmontar a pesquisa de ponta realizada nos laboratórios do Brasil em favor das forças neoliberais a que servem no plano internacional.
Enquanto a Europa buscou e busca avançar na laicização, na secularização e na aliança entre ciência e burguesia, o Brasil parece fazer o caminho inverso tomando a burguesia a ciência como uma opositora ao seu  poder. Talvez, isto se dê pelas premissas diferentes de poder, enquanto os Europeus arduamente buscam manter sua autonomia e protagonismo global via unidade europeia e para isto o investimento na investigação científica é fundamental, o Brasil oligárquico e de caciques políticos parece não conseguir abandonar o colonialismo travestido de dependência. E, para isto a religião em seus moldes tradicionais é fundamental, pois, só acreditando que o sofrimento tem um papel fundamental na existência podemos continuar a nos submeter a super exploração.
Assim, dependência não no sentido defendido por Fernando Henrique Cardoso, mas, antes e sobretudo, no de Ruy Muro Mariane. Pois, enquanto na Europa nos momentos de crise se investe mais em ciência de ponta, por aqui o governo Temer e seus aliados desconstroem o espaço da ciência de qualidade em proveito da religião como forma de explicar o mundo e censurar da arte à escola.

Wlaumir Souza