No ocidente as disputas entre a razão
e o mundo encantado das religiões foram travadas, em especial, até a Revolução
Francesa e Industrial. Estes feitos humanos foram demonstração prática do que a
Filosofia, desde Rene Descartes, apontava como elemento fundamental: o
pensamento racional como desencantamento do mundo.
Não foi uma disputa fácil e até hoje
não tem um ganhador unanime. Muitos ainda se entregam as “bênçãos e rezas” para
solucionar os problemas humanos mesmo já havendo respostas
racionais-científicas disponíveis no mercado e com acesso que se pretende
universal.
A França, pátria dos Direitos do
homem – e o nome não é por acaso, as mulheres, na fundação contemporânea,
estavam excluídas – foi um dos marcos na disputa com a Igreja na busca dos
direitos da razão sobre a emoção e a fé. O preço a pagar não foi baixo e a
busca desta primazia da liberdade racional laica sobre os impulsos de controle
da fé chegaram aos dias de hoje no embate entre uma França que se diz católica
sem abrir mão do desencantamento do mundo.
Mas, o embate atual não é mais,
apenas, contra a Igreja que se rendeu, em partes, aos avanços da explicação
racional-científica, mas, contra aquela que sendo vista como outra, como
estrangeira, é posta como risco para os avanços do desencantamento capitalista.
Esta outra Igreja, o islã de forma
genérica, não quer se rende aos avanços da razão capitalista científica – e nisto
faz coro com várias outras vertentes religiosas – e quer manter o mundo
encantando onde, por exemplo, não há representação pictográfica do fundador –
Maomé – ou da divindade. Mas, nisto têm uma visão comum a muitas outras
religiões que não admitem qualquer tipo de imagem ou até mesmo a escrita da
palavra Deus por completo. E, neste ponto, não por acaso, diversos santos
católicos já foram depredados em praça pública ou em templos.
A questão da liberdade de expressão
tem por pano de fundo quem manda na nação e possui o monopólio da “verdade” e do
uso da violência legítima para o controle social: o Estado ou a religião. É demanda
medieval do ocidente revivida hoje em diversos países teocráticos.
Se o Estado abrir mão de seu papel
racional desencantado com base nos direitos humanos de legalizar a livre fala,
escrita e representação pictográfica aos seus cidadãos estaria abrindo mão para
que a religião, o mundo encantado volte a dizer o que pode ou não ser impresso,
dito ou escrito ou representado. Ou mesmo, pensado e sentido e vivido.
A representação pictográfica de Maomé
é apenas um dos elementos que compõe a disputa entre um ocidente que se diz
marcado pela razão, pelo racional, pelo desencantado e um mundo que se propõe
como encantado e religioso onde os homens – não haveria espaço ainda para
mulheres – líderes da religião seriam também os senhores pessoais donos do
poder de Estado. Um retrocesso do modelo de dominação baseados em leis laicas e
seculares para o de controle baseado na moral legislada pela religião.
Neste ponto o Ocidente encontrou um
ponto de apoio capaz de unir parte significativa das nações – apesar das
discussões dos possíveis abusos da liberdade de expressão – em busca de uma
identidade ocidental em favor da liberdade de escrever, dizer, pensar, sentir e
pictografar. A liberdade de expressão laicizada contra a expressão religiosa
controlada. E, apenas para lembrar, a caricatura foi elemento fundamental para
que a França saísse do Antigo Regime encantando para o mundo contemporâneo em
desencantamento republicano e democrático.
Wlaumir Souza
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