quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Embates e manifestações

Alguns embates são milenares. Outros seculares. Embates Milenares assumem diferentes variações ao longo dos séculos. Este o caso da legitimidade da posição social, do status.
Uma das formas mais longevas de status é o nascimento. Do mundo grego, passando pela monarquia, aos “bem nascidos do capitalismo” é uma constante que encontrou diferentes formas de legitimação histórico-social-político-cultural-científico.
Ao mundo antigo e às monarquias interessavam o nascimento divinizado. Quer o herói grego – um semideus –, ou o nascimento de origem divina das monarquias absolutistas – mas, não como casos únicos na história – o papel do sagrado foi lapidar para a detenção do poder que subjuga, controla e explora a maioria da população. Num contínuum histórico do mundo antigo ao moderno o papel da religião foi fundamental para o controle social tido e havido como legítimo pela maioria das consciências.
Legitimar um mundo organizado, para os gregos, criado, para os cristãos, pela(s) divindade(s) foi papel desenvolvido pelas religiões clássicas e depois pelo cristianismo, primeiro católico e, posteriormente, também, protestante. Neste terreno o papel educador era predominantemente realizado pelas igrejas e seus anexos – conventos, mosteiros, escolas religiosas...
Todavia, a este poder divinizado que se escorava na estabilidade das relações sociais, econômicas, políticas e, sobretudo, na produção do conhecimento que não escapava aos limites do legitimado pelo poder, encontraria a crise em sintonia ao final do mundo moderno.
A substituição progressiva da nobreza e da realeza por outras forças na economia, primeiro, e depois, no poder de Estado, precisaria de outra ideologia – enquanto ciência das ideias – para legitimar-se no poder.
Não é mero acaso histórico que a obra de Charles R. Darwin, A origem das espécies, de 1859, tenha sido produzida depois da Independência dos EUA, 1776 – data da Declaração da Independência – da Revolução Francesa, 1789, entre outras datas republicanas que substituíram a monarquia como forma de governo legítimo e nobreza enquanto grupo de privilégios. 
Aquele mundo natural de ordem estável universal eterna da explicação religiosa, já não contemplava os interesses políticos, econômicos e culturais da nova classe que assumia o poder e fazia construir e impor sua visão de mundo. Neste ponto, substituir a ordem divinizada de saberes de verdades eternas imutáveis pela ordem científica de saberes provisórios era fundamento da legitimidade do poder que controla e explora a ordem social no capitalismo de tem como mote a circulação das classes - mais na teoria que na prática.
A origem das espécies traz uma ideia, primeiro ridicularizada pela religião e pela burguesia, devido ao seu poder original e exemplar, todavia, com o tempo, a elite capitalista e política das repúblicas notam seu papel legitimador da nova ordem em substituição a ordem monárquica. Embora a igreja permanecesse no discurso defendendo que o melhor dos regimes era a monarquia, na prática, esta perdia espaço a cada década.
Legitimar este processo histórico de substituição do poder historicamente construído e instituído  encontraria sua pedra de toque na ideia da evolução. Assim, a história seria uma evolução onde a transformação realizada pelos mais apitos iria se impor por uma questão de razão. Deste prisma evolutivo da sociedade humana, numa transposição grosseira do biológico para o cultural – Darwinismo social – a burguesia encontrou uma âncora para o seu poder. Os mais ricos, os mais adaptados a ordem capitalista e a seu modelo civilizacional seriam os que permaneceriam no jogo e a circulação das classes garantiria a equação.
Estas ideias, mais que criticadas pela humanidades, permanecem nas mentes e nos corações de muita gente que quer se auto representar e se autocompreender como ápice da elite evolutiva social, cultural, econômica e política. Neste ponto, parte-se para a deslegitimação e desconstrução de qualquer outro discurso que possa trincar o edifício “científico evolutivo” que tantos serviços prestaram e presta ao capital na legitimação de uma circulação das elites que pouco existe no plano real.
O Estado de bem-estar social seria uma das trincas deste edifício legitimador da ordem de controle e exploração da maioria no capitalismo republicano e democrático. Este Estado de bem-estar social visto no Brasil na letra da lei, há décadas, é o pomo da discórdia na política contemporânea. Mais ainda quando viabiliza de fato, e não apenas por direito, a ascensão de  frações de classes.
Certo grupo que se autocompreende como “elite” – não passando quando muito de classe média – se exaspera por ver como políticas públicas bem elaboradas, com eficiência e eficácia aplicadas, podem não ampliar o nível de status de todos, mas, antes, entendida como redução do nível de status das "elites tradicionais". A preocupação não é com o bem-estar coletivo, mas, com o sentimento privado de sucesso individual e individualista que se vê limitado pela possibilidade de uma parte da sociedade, que era mantida na miséria como plataforma de exploração ad infinituam, ser minimizada em seu grau de aviltamento.
Neste ponto de disputa, qualquer ator social que possa parecer “trair” sua classe em nome do bem-estar é severamente punido. Os exemplos não são poucos: o advogado fotografado em camisa sem mangas e vilipendiado como se fosse mais um dos disponíveis ao clamor de uma distinção entre os que podem ou não estar no aeroporto e voar; Jô Soares ao entrevistar a Presidenta foi ameaçado de morte; o príncipe da Sociologia FHC destratado por defender a possiblidade de inocência evitando o pré-julgamento que tanto agrada aos defensores do Estado de exceção, da Ditadura e do autoritarismo.

Estas vertentes de uso da força como meio de legitimar o poder, pensando que fazem parte da elite evolutiva que nunca existiu, apesar do nazismo que implica, é uma excrecência histórica no século XXI. Afinal, a democracia pode e deve conviver com o diverso, o plural, e neste incluso, o direito a vida e manifestação de nazistas, ditadores, autoritários e outros naipes ao mesmo estilo. O que a democracia não pode é permitir que estes grupos assumam o poder de legitimar a ordem e de tomar o poder. Mais que isto, a democracia precisa cumprir o papel de educar e evidenciar que por trás de nomes como “Brasil Livre” estão pontos de vistas duvidosos na referência democrática e um de seus baluartes, os Direitos Humanos.
Afinal, se o uso de termos belos à sociedade democrática – mesmo que evolutiva -  fosse garantia de bem-estar o lema do PCC poderia ser aplaudido em praça pública pelos incautos e desinformados: “Paz. Justiça. Liberdade”.

Ao sair as ruas nas próximas manifestações lembre-se, não pode os meios democráticos de participação, de liberdade, de expressão serem meios para legitimar a ausência de liberdade, de Direitos Humanos e do Estado Democrático de Direito. 

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