Alguns
embates são milenares. Outros seculares. Embates Milenares assumem diferentes
variações ao longo dos séculos. Este o caso da legitimidade da posição social,
do status.
Uma das
formas mais longevas de status é o nascimento. Do mundo grego, passando pela
monarquia, aos “bem nascidos do capitalismo” é uma constante que encontrou
diferentes formas de legitimação histórico-social-político-cultural-científico.
Ao mundo antigo
e às monarquias interessavam o nascimento divinizado. Quer o herói grego – um
semideus –, ou o nascimento de origem divina das monarquias absolutistas – mas,
não como casos únicos na história – o papel do sagrado foi lapidar para a
detenção do poder que subjuga, controla e explora a maioria da população. Num
contínuum histórico do mundo antigo ao moderno o papel da religião foi
fundamental para o controle social tido e havido como legítimo pela maioria das
consciências.
Legitimar
um mundo organizado, para os gregos, criado, para os cristãos, pela(s)
divindade(s) foi papel desenvolvido pelas religiões clássicas e depois pelo
cristianismo, primeiro católico e, posteriormente, também, protestante. Neste
terreno o papel educador era predominantemente realizado pelas igrejas e seus
anexos – conventos, mosteiros, escolas religiosas...
Todavia,
a este poder divinizado que se escorava na estabilidade das relações sociais,
econômicas, políticas e, sobretudo, na produção do conhecimento que não
escapava aos limites do legitimado pelo poder, encontraria a crise em sintonia
ao final do mundo moderno.
A
substituição progressiva da nobreza e da realeza por outras forças na economia,
primeiro, e depois, no poder de Estado, precisaria de outra ideologia –
enquanto ciência das ideias – para legitimar-se no poder.
Não é
mero acaso histórico que a obra de Charles R. Darwin, A origem das
espécies, de 1859, tenha sido produzida depois da Independência dos EUA,
1776 – data da Declaração da Independência – da Revolução Francesa, 1789, entre
outras datas republicanas que substituíram a monarquia como forma de governo
legítimo e nobreza enquanto grupo de privilégios.
Aquele
mundo natural de ordem estável universal eterna da explicação religiosa, já não
contemplava os interesses políticos, econômicos e culturais da nova classe que
assumia o poder e fazia construir e impor sua visão de mundo. Neste ponto,
substituir a ordem divinizada de saberes de verdades eternas imutáveis pela
ordem científica de saberes provisórios era fundamento da legitimidade do poder
que controla e explora a ordem social no capitalismo de tem como mote a
circulação das classes - mais na teoria que na prática.
A origem
das espécies traz
uma ideia, primeiro ridicularizada pela religião e pela burguesia, devido ao
seu poder original e exemplar, todavia, com o tempo, a elite capitalista e
política das repúblicas notam seu papel legitimador da nova ordem em
substituição a ordem monárquica. Embora a igreja permanecesse no discurso
defendendo que o melhor dos regimes era a monarquia, na prática, esta perdia
espaço a cada década.
Legitimar
este processo histórico de substituição do poder historicamente construído e
instituído encontraria sua pedra de toque na ideia da evolução. Assim, a
história seria uma evolução onde a transformação realizada pelos mais apitos
iria se impor por uma questão de razão. Deste prisma evolutivo da sociedade
humana, numa transposição grosseira do biológico para o cultural – Darwinismo
social – a burguesia encontrou uma âncora para o seu poder. Os mais ricos, os
mais adaptados a ordem capitalista e a seu modelo civilizacional seriam os que
permaneceriam no jogo e a circulação das classes garantiria a equação.
Estas
ideias, mais que criticadas pela humanidades, permanecem nas mentes e nos corações
de muita gente que quer se auto representar e se autocompreender como ápice da
elite evolutiva social, cultural, econômica e política. Neste ponto, parte-se
para a deslegitimação e desconstrução de qualquer outro discurso que possa
trincar o edifício “científico evolutivo” que tantos serviços prestaram e
presta ao capital na legitimação de uma circulação das elites que pouco existe
no plano real.
O Estado
de bem-estar social seria uma das trincas deste edifício legitimador da ordem
de controle e exploração da maioria no capitalismo republicano e democrático.
Este Estado de bem-estar social visto no Brasil na letra da lei, há décadas, é
o pomo da discórdia na política contemporânea. Mais ainda quando viabiliza de
fato, e não apenas por direito, a ascensão de frações de classes.
Certo
grupo que se autocompreende como “elite” – não passando quando muito de classe
média – se exaspera por ver como políticas públicas bem elaboradas, com
eficiência e eficácia aplicadas, podem não ampliar o nível de status de todos,
mas, antes, entendida como redução do nível de status das "elites
tradicionais". A preocupação não é com o bem-estar coletivo, mas, com o
sentimento privado de sucesso individual e individualista que se vê limitado
pela possibilidade de uma parte da sociedade, que era mantida na miséria como
plataforma de exploração ad infinituam, ser minimizada em seu grau de
aviltamento.
Neste
ponto de disputa, qualquer ator social que possa parecer “trair” sua classe em
nome do bem-estar é severamente punido. Os exemplos não são poucos: o advogado
fotografado em camisa sem mangas e vilipendiado como se fosse mais um dos
disponíveis ao clamor de uma distinção entre os que podem ou não estar no
aeroporto e voar; Jô Soares ao entrevistar a Presidenta foi ameaçado de morte;
o príncipe da Sociologia FHC destratado por defender a possiblidade de
inocência evitando o pré-julgamento que tanto agrada aos defensores do Estado
de exceção, da Ditadura e do autoritarismo.
Estas
vertentes de uso da força como meio de legitimar o poder, pensando que fazem
parte da elite evolutiva que nunca existiu, apesar do nazismo que implica, é
uma excrecência histórica no século XXI. Afinal, a democracia pode e deve
conviver com o diverso, o plural, e neste incluso, o direito a vida e manifestação
de nazistas, ditadores, autoritários e outros naipes ao mesmo estilo. O que a
democracia não pode é permitir que estes grupos assumam o poder de legitimar a
ordem e de tomar o poder. Mais que isto, a democracia precisa cumprir o papel
de educar e evidenciar que por trás de nomes como “Brasil Livre” estão pontos
de vistas duvidosos na referência democrática e um de seus baluartes, os
Direitos Humanos.
Afinal,
se o uso de termos belos à sociedade democrática – mesmo que evolutiva -
fosse garantia de bem-estar o lema do PCC poderia ser aplaudido em praça
pública pelos incautos e desinformados: “Paz. Justiça. Liberdade”.
Ao sair
as ruas nas próximas manifestações lembre-se, não pode os meios democráticos de
participação, de liberdade, de expressão serem meios para legitimar a ausência
de liberdade, de Direitos Humanos e do Estado Democrático de Direito.
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