sábado, 19 de outubro de 2013

Escravas da natureza?

Escravas da natureza?

Postado em 03 de Maio de 2012 às 10:05 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza 

A deliberação do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 12 de abril de 2012, de que o aborto de feto anencéfalo não constitui crime é um marco na história do Brasil e nas “contradições” do Poder Judiciário.
Na trilha histórica do Judiciário fica claro que o Legislativo, no Brasil, não é capaz de representar os direitos das minorias a ponto de responder rápida e eficientemente aos seus clamores e valores sociais. Assim, o Legislativo ocupa-se de representar as maiorias, quer sejam estas as numéricas ou as de poder – neste último caso pode significar uma parcela super privilegiada da sociedade com poder econômico para impor-se de diferentes maneiras e quase sempre imperceptível. Nos dois casos fica patente que o cálculo eleitoral é mais importante ao Legislativo que a construção de uma sociedade mais justa, livre e igualitária e, portanto, DEMOCRÁTICA.
mulheres gravidas de steve gribbenmulheres gravidas de steve gribben
O Judiciário ergue-se, assim, como uma das poucas possibilidades das minorias se fazerem ouvir e respeitar. Isto é no mínimo contraditório visto que assistimos estupefatos a decisão sobre as meninas estupradas. Estas foram negligenciadas em seus direitos subjetivos à infância e a proteção pelo fato de estarem em prostituição. Deste prisma, sexo com meninas menores de 14 anos não constitui crime, estupro, se estiverem em situação de prostituição. Pergunto, e se fosse com meninos menores de idade, qual seria a decisão?
A contradição poderia ser maior se analisássemos lado a lado o caso de não se considerar o aborto de anencéfalo crime e o das meninas em situação de prostituição. Mas, a contradição é apenas aparente. Nos dois casos o macho é o privilegiado. Em outros termos, seria a natureza o destino?
Para lançar luz a este procedimento compararei com o processo de libertação dos seres humanos escravizados no Brasil. 



O manto do discurso naturalizante consolidava o direito à propriedade dos corpos escravos com milhares de implicações ainda reinantes. Semelhantemente, faz-se o mesmo com a imposição da maternidade à mulher – é natural. Não por acaso cunhou-se a expressão “mãe desnaturada”, pressupõem-se que ser mãe é algo natural e, portanto, fora do contexto social e histórico. Engano grosseiro este disseminado pela sociedade conservadora e mesmo retrógrada e seus pares institucionais. Ser mãe é um fruto de desejo histórica e socialmente ancorado, portanto, nem toda mulher é obrigada a ser mãe do ponto de vista subjetivo, embora a maioria das mulheres possa reproduzir do ponto de vista biológico.
O fim da escravidão foi um processo “lento e gradual” que durou aproximadamente meio século. O mesmo ocorre, mas em tempo muito mais dilatado, ralentando com o direito reprodutivo da mulher. E, aqui, a aparente contradição do STF se desfaz. 
Como no lento processo de encerramento da escravização humana formal – o primeiro atendido não foi o interesse do escravizado, mas do senhor —, no tempo presente se reproduz o processo com os direitos reprodutivos da mulher. Ou seja, o fim da escravidão se iniciou atendendo mais aos interesses do dono de escravizados, uma vez que o liberou dos escravos improdutivos. O mesmo ocorre com os direitos reprodutivos femininos. Nos casos até agora legais se atendem em primeiro lugar a demanda masculina e a feminina por contingência. 
No caso de aborto por estupro, tenta-se privar o macho de sustentar publicamente um rebento que não é seu. A mulher agradece por essa possibilidade. No caso de risco de vida da mãe, não se quer privar o macho de sua fêmea. E, a mulher agradece. No caso de anencéfalo, se evita um processo oneroso e desgastante do casal e, mesmo, de privação da possibilidade de novos rebentos. A mulher mais uma vez agradece. Mas, ainda paira longe a verdadeira libertação da escravidão biológica que se quer dizer também cultural — o ser mãe. Afinal, isto só será uma conquista inteiramente feminina quando o aborto for plenamente legalizado. 
Não por acaso, um dos machos no tribunal  - Ayres Britto – referendou frase histórica do movimento feminista ao dizer: "o grau de civilidade de uma sociedade se mede pela liberdade da mulher” e continuou “se os homens engravidassem, a interrupção da gravidez de anencéfalo estaria autorizada desde sempre”.
Mas, mesmo aí, as consequências sociais permanecerão, pois o discurso naturalizante das diferenças sociais e de gênero é um dos mais enraizados e difíceis de superar da propaganda conservadora e reacionária e, por isto mesmo e justificando-se face a estes, a fala geral foi de que o Poder Judiciário em nada autorizava o aborto para além daquele debatido.

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