sábado, 19 de outubro de 2013

O estupro é um "estrupo”

O estupro é um "estrupo”

Postado em 16 de Janeiro de 2013 às 16:01 na categoria Caleidoscópio
Por Wlaumir Doniseti de Souza
A feminilidade é sagrada. Esta frase aparentemente edificante oculta mais do que a imensa maioria poderia supor ou imaginar, ao longo de toda a existência. Com esta citação, na França, mas não apenas ali, se defende o papel tradicional da mulher e das relações de gênero por cristãos, muçulmanos e de direitistas que marcharam esta semana contra o casamento gay. 

Esta feminilidade sagrada pressupõe um tipo de comportamento. Ficar em casa, olhar para abaixo, usar roupas condizentes com seu sexo e submeter-se à ordem masculina. O oposto deste, para esses grupos, deve ser combatido das mais diferentes formas. A violência física faz parte, embora a alardeada publicamente seja a simbólica. 


Todavia, o número do feminino sagrado estuprado no espaço privado é enorme. Os algozes são pais, avós, tios, primos, irmãos e amigos da família, entre outros conhecidos. Olhar para baixo nada garante — as japonesas foram especialmente treinadas neste olhar (e não apenas elas), e foram estupradas ao longo dos séculos. Se a roupa fosse solução, as que utilizam véus com roupas amplas até os pés não seriam alvo do estupro, as que vestem burca, então, jamais seriam estupradas. A realidade é bem outra. Não por acaso, a tendência é a inexistência de números oficiais de estupros nos países árabes e/ou muçulmanos. Pessoas que não se submetem à ordem masculina, em diferentes países, alguns com o apoio do Estado, sofrem estupros educativos e/ou corretivos.

O estupro para mulheres; a difamação de LGBTTs; a piada para o negro. Três vértices unidos em uma única ponta: a garantia de pré-dominância e da “oficialidade” do oposto a tudo isto.

Neste campo, os estupros coletivos, seja na Índia ou no Brasil, na Europa ou nos países árabes e/ou muçulmanos, ou mesmo em Ribeirão Preto, desempenham o mesmo papel que por séculos teve — o de humilhar. Como exemplo lapidar pode-se citar o Império Romano, que estuprava todas, indistintamente, após a vitória. No mundo contemporâneo, japoneses, coreanos e outros de olhos claros denunciam os estupros das guerras. E, mesmo hoje, nas trincheiras norte-americanas, militares femininas e masculinos são estuprados.

Trazer à baila estas questões demonstra apenas uma coisa: tanto faz a veste, o olhar, a submissão e o sexo — o macho usa o estupro como meio de humilhação para todos aqueles e aquelas que não se submeteram à ordem da pré-dominância, e por isso os violam. Neste sentido, uma mulher que esteja em determinados espaços, que possua uma educação superior ou qualquer outro símbolo de status que possa constranger os machos desta “pré-dominância”, corre risco.

O problema, então, não é a roupa, o olhar, o local. O problema é a educação machista reproduzida em seus mínimos detalhes na rede escolar, na socialização familiar e mesmo na sociedade mais ampla. Sinal amarelo neste contexto é o fato de que a uma violência se propõe outra como solução. Ao estupro se propõe como solução o linchamento.

O linchamento público de estupradores demonstra apenas uma coisa: a ordem do macho violento se reproduz em meio aos dominados, que violam outros numa catarse coletiva que a todos escraviza, e nada muda. A solução estaria em uma educação plural no que tange ao gênero, mas, quanto a isto, uma parte significativa marcha contra não percebendo (ou fingindo não ver) que a mesma construção do feminino como sagrado garante o silêncio das estupradas.

Ao final, resta apenas uma certeza. O estupro é um “estrupo” no sentido de que depois dele nada será como antes, não para a sociedade que continuará marchando unida ao redor de cristãos, muçulmanos e direitistas, mas para o sujeito humilhado, devido a qualquer símbolo de status que possa, de algum modo, ameaçar a ordem da pré-dominância masculina.


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