sábado, 19 de outubro de 2013

“Presente!”

“Presente!”

Postado em 19 de Março de 2012 às 17:03 na categoria Caleidoscópio
Wlaumir Doniseti de Souza
E se você soubesse que aquele “velhinho” simpático que mora em frente a sua casa e brinca com seus filhos era um torturador? E se você soubesse que o seu pai ou avô era um estuprador em nome da ordem e do Estado? E se você soubesse que não é filho dos seus pais, mas que foi retirado à força de uma mulher grávida, no cárcere? E se você soubesse que aquele senhor respeitável que ocupa a função de ministro da eucaristia, padre ou pastor foi um informante do regime que levou ao extermínio pessoas que lavoraram pela democracia, pela liberdade e pela igualdade; e, pior ainda, consolaram a família em meio à tragédia do desaparecimento para continuar a informar? E se você soubesse que o seu ascendente era um violentador sexual de homens encarcerados? E se você soubesse que aquele tio, primo,  dentista, psicólogo ou médico instruiu os piores procedimentos para a obtenção da “verdade”, sob tortura? Ou que aquela foto histórica de família ao invés de ser um símbolo de honra e distinção fosse uma prova dos laços históricos entre torturadores e estupradores oficiais?
cartum de Lattuf cartum de Lattuf

O direito à memória é uma das questões mais sutis da humanidade. Não nos faz falta quando a temos, conscientemente. Mas, nos constrange dolorosamente quando nos falta. Veja o caso de crianças órfãs de famílias que perderam tudo nas enchentes, de pessoas que são removidas em nome do progresso do local em que sempre viveram os seus ascendentes.
No Brasil, o direito à memória é banalizado e mesmo rejeitado. Se focalizarmos em Ribeirão Preto, por exemplo, há a demolição e o abandono das casas das elites que foram ou seriam patrimônio cultural. Ou, pior, a ausência de manutenção das velhas casas onde moravam os mais pobres, a começar pelos imigrantes europeus que colaboraram com a construção do que somos hoje. Se falarmos do direito à memória do negro e do índio, então, a perversidade humana se desvela em sutilezas terríveis demais para apagá-las.



É exatamente para não enfrentar ou alterar a ordem destas questões que tantos militares têm vindo à tona de pijamas para dizer não à Presidenta Dilma e à sistemática organização do governo para que se proceda a transparência no que diz respeito à memória de tantas famílias que foram vilipendiadas em seus direitos mais fundamentais durante o Regime Militar. Se estes mesmos militares consideram que prestaram serviços tão relevantes à Pátria, à Nação e ao Estado deveriam estar felizes com a “Comissão da Verdade”. Todavia, estes distintos senhores temem aquilo que, por vezes, e em número nada insignificante, alguns deles esconderam de vizinhos, amigos e familiares, o possível lado mais sombrio de torturador, de perseguidor e outras mazelas desumanas em nome de certa “civilização”. 

vitimas da ditadura vitimas da ditadura

Não deixa de ser simbólico e materialmente relevante que uma Presidenta viabilize esta questão. Afinal, para dizer numa linguagem que possivelmente seria mais compreensiva à parte mais retrograda dos de pijama, alguém tem “peito” para enfrentá-los e dizer à Nação o que todos desejam, enfim, o que realmente fomos e onde estávamos durante o Regime Militar.
Aos nazistas foram feitas estas perguntas: onde estava, o que fazia, quem apoiava? Aos ditadores dos mais variados países da América Latina também o fizeram. Aos ditadores árabes e seus asseclas, atualmente expulsos do poder, se fazem estas perguntas. Mas, assim como no fim da escravidão fomos os últimos, infelizmente corremos o risco de sermos os últimos também a termos o direito à memória.
Enquanto isto não acontece, as famílias dos desaparecidos, dos que “enlouqueceram”, dos que se “suicidaram”, e os militantes resistem à insistência estatal de manter ocultos os bastidores da ditadura respondendo “Presente!” em coro todas as vezes que os nomes dos desaparecidos são citados, uma forma de lembrar que eles podem não estar ali fisicamente, mas estão representados por aqueles que nunca se esqueceram. E, agora, finalmente, com o apoio da Presidenta que enfrenta forças nada desprezíveis.

Nenhum comentário:

Postar um comentário